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domingo, 5 de abril de 2020

CONVID 19 - MEDITAÇÃO QUARESMAL



É com muita alegria que temos um novo e querido colaborador no Blog O PORTA VOZ.

Colocaremos aqui a série de MEDITAÇÕES E REFLEXÕES QUARESMAIS, escritas por Frei Aloísio nesses tempos de Covid 19 e isolamento ou quarentena.

Vamos aproveitar, também nós, o nosso tempo em casa, para lermos e refletirmos nesses tempos difíceis, mas que, com muita fé e esperança, logo passarão.

Postaremos hoje as meditações anteriores e, em seguida, nos manteremos atualizados.



Por Frei Aloísio



CONVID 19 - PRIMEIRA MEDITAÇÃO QUARESMAL

   Estou iniciando um tempo de isolamento como medida preventiva para escapar à pandemia do coronavirus. Sei que estou fazendo uma boa ação em defesa da vida, da minha e de outras pessoas. A despeito disso, certos pruridos vem alfinetando a minha consciência.

   Enquanto eu me dou ao direito de isolar-me voluntariamente, outros companheiros, profissionais da saúde, assumem o dever de encarar de frente o terrível "inimigo". Neste momento sinto cada um deles maior do que eu. Daqui da minha disfarçada pequenez saúdo a grandeza de vocês. Consola-me o recado que mandaram, aconselhando-nos a "ficar em casa, POR VOCÊS, que estão aí, POR NÓS." Obrigado!
   Outra alfinetada mais aguda recebi de um taxista, que me levou de BOA VIAGEM para o COQUE. "O que é que  pobre vai fazer? Vai lavar as mãos dez vezes ao dia, quando a água da Compesa chega à sua casa uma vez por semana? Vai a pé para o trabalho, a fim de evitar a superlotação dos coletivos? Vai cair em depressão, ao saber que pode estar levando, da rua para a família o maldito vírus coroado? Não! Só lhe resta clamar aos céus: "seja o que Deus quiser!"

   Está transferência da culpa humana para as costas de Deus pode parecer pura alienação, mas, na verdade, é o antivírus contra o desespero.

  E eu, nisso tudo, franciscano, amigo dos pobres, bem recolhido numa casa grande e confortável?

  Aí está a pergunta penitencial: por que os pobres pagam o preço mais alto por tudo de ruim que acontece neste mundo?

  Esta primeira noite dormi mal porque a imaginação mergulhou no caos.

  Então me veio à mente um pedaço de um poema  de Fernando Pessoa, onde ele maldiz o fato de ser lúcido e perceber para além do seu tempo e dos seus conterrâneos:
  "Não tenho defesa nenhuma, sou lúcido! Não me queiram converter a convicção, sou lúcido! Já disse: sou lúcido! Merda! Sou uva lúcido!"

   (Perdoa-me, Senhor, é que, em certos momentos de indignação, um palavrão inofensivo ajuda.) Agradeço pela lucidez do Espírito

  Convido os amigos leitores a prosseguir nestas meditações. 


COVID 19 - SEGUNDA REFLEXÃO QUARESMAL. 

    Durante o período da Quaresma ouve-se muitas vezes a palavra PENITÊNCIA. Não se trata de uma idéia-monopólio da espiritualidade cristã. Não há nenhum tipo de realização humana, visando um objetivo superior, que não suponha e exija penitência, no sentido etimológico, no sentido original da palavra (do grego "metanoia", ultrapassagem do modo atual de ser e agir.)

    Uma das mais árduas penitências hoje em dia é o ato de contemplar a realidade. Contemplar não significa ver, olhar, enxergar, e sim desvendar, decifrar, mergulhar no mistério das coisas. Daí o grande número de pessoas tentando fugir para o irreal. E a esperteza do Sistema em criar espaços e instrumentos que favoreçam este relax.

    A pandemia do coronavirus está nos obrigando a um relax compulsório.

    A fim de contemplar esta realidade necessitamos de algum ponto de vista que nos dê clareza e segurança. A fé nos aponta o Calvário, a Cruz. No entanto, esta não se reduz à visão da dor, da morte; é antes a visão da dor e da morte transfiguradas  pelo mistério. O maior deles: a possibilidade da dor ser purificadora, da morte ser redentora, da paz emergir das ruínas da guerra, da vida nova ser gerada de dentro do túmulo.

    Ao contrário do que pode parecer, com a suspensão de todos os rituais religiosos tradicionais, podemos vivenciar a Quaresma com maior intensidade, inserindo-nos dentro deste mistério.

   Aprendamos as lições da História. A peste negra, que irrompeu na Europa, no ano de 1348, e durou 5 anos e matou 25 milhões de pessoas, foi infinitamente mais devastadora do que a atual. Em muitos casos ela obrigou a mudar o sentimento humano de amor em ódio como arma de sobrevivência. Uma mãe não podia socorrer um filho infectado, pois não tinha como escapar do contágio e com isso destruiria o resto da família. Como enfrentar esta situação sem desesperar ? Com uma única saída: convertendo para o ódio o sentimento do amor (o ódio não é a negação do amor, mas o mesmo amor em estado de frustração, motivo de maiores sofrimentos).

    A peste negra produziu profundas e radicais mudanças de ordem teológico-religiosas e filosófico-existenciais. Pareceram inúteis os recursos da Fé. E, sendo a vida tão frágil e indefesa, que outra finalidade a vida

pode ter, senão a de aproveitar ao máximo o momento presente? Nunca mais o mundo foi o mesmo.

    Sugestão para as meditações quaresmais: que mudanças podemos esperar da coronavirus na alma do mundo e dos indivíduos? 



COVID 19 - TERCEIRA REFLEXÃO QUARESMAL

    Surgem situações-limite na vida individual e global do planeta Terra que produzem espontaneamente a seguinte pergunta: "somos todos reféns da fatalidade?"

    Uma destas situações acontece quando seus habitantes são atacados por um inimigo invisível, imprevisível e de efeitos incomensuráveis. Estamos enfrentando um destes momentos e são muitas as pessoas em estado de perplexidade. Daí nasce uma outra questão: a pandemia coronavirus emergiu do nada ou resultou de algum erro fatal na administração do MEIO AMBIENTE, sob nossa responsabilidade, por razões que escapam à nossa percepção atual?

    Faz alguns anos, os ideólogos do Capitalismo Neoliberal, frente à queda do Socialismo real, cantaram vitória com palavras grandiloquentes, numa linguagem mítico-religiosa, definindo-se como "VIA ÚNICA, guiada por MÃO INVISÍVEL, para chegar a um ÊXITO IRREVERSÍVEL.". Uma verdadeira autodeificação.

    Pouco tempo durou a sua arrogância. Os fatos foram revelando que outros fatores, além do econômico, determinam a História. Na verdade, o Capitalismo criou ilhotas de riquezas, cercadas por um vasto continente de penúrias e incertezas;  provocou sucessivas crises sociais e políticas e não conseguiu evitar a espiral devastadora de violências. Em suma, a conjugação dos dois polos, que constituem a grande utopia da humanidade, o PROGRESSO e a PAZ, fracassou. Contudo, ninguém ousa chamar de pandemia esta tragédia que continua ceifando milhões de vidas, nos países subdesenvolvidos.

    E então? Somos ou não somos prisioneiros impotentes da fatalidade?  A nossa FÉ cristã não admite este impasse. Ela  culminou  com uma catástrofe: o Calvário, a morte de Jesus. Em termos micro, isso foi tão fulminante como o coronavirus, pois liquidou de vez todas as esperanças de seus apóstolos. É aí que entra o poder da fé. A morte de Jesus possui um componente simbólico que transcende seu limite físico. Jesus morreu e não morreu. Pois em curto lapso de tempo, a vida prevaleceu,  com sua RESSURREIÇÃO. Porque a Deus nada é impossível.

    Daí em diante foi ficando claro que a História é conduzida por um PODER SUPERIOR, que não dispensa a nossa parte, mas se sobrepõe. Por conseguinte,  ela, a História, não se guia apenas pela ciência ou pela lógica dos possíveis e impossíveis. Ela se guia sobretudo pela loucura da FÉ, pela loucura da ESPERANÇA, pela loucura do AMOR. A pandemia do coronavirus nos convida a acionar o poder destas três loucuras, chamadas também paixões.

    Tudo isso encerra o Mistério da Páscoa, que se aproxima. Caminhemos na sua direção, lembrados das palavras de São Paulo: "DEUS TOMA AS DORES DA HUMANIDADE E TRANSFORMA-AS EM DORES DE PARTO PARA UMA VIDA NOVA"

COVID 19, QUARTA REFLEXÃO QUARESMAL

   Ao longo de toda a Quaresma a Igreja nos convida a contemplar o Madeiro da Cruz, na sua representação real e simbólica. A Cruz é parte integrante da vida ordinária, ninguém está dispensado de carregá-la; mas ela também constitui um dos grandes mistérios humanos, pois vem sempre acompanhada de muitos porquês. Em tempos de pandemia, milhões de vozes se interrogam: por que? Por que? Pergunta tão inevitável quanto inútil. Os que ousam dar-lhe respostas produzem uma floresta de novas perguntas.

   Nossa chamada Sociedade de Consumo, sob o domínio da Economia de Mercado, espertamente capturou a simbologia da Cruz, em prol de seus interesses. Tirou-lhe os cravos, as manchas de sangue, os gritos de dor e cobriu-a com uma áurea de luminosidade multicolorida, transformando-a  em uma belíssima jóia.  Cruz da glória sem ter passado pelo Calvário. Pura ilusão.

   Nossa Fé cristã, em lugar de buscar explicações racionais, ou passar ao largo dela, a insere no âmago da sua doutrina. Ouvimos Jesus declarando: "Quem quiser ser meu discípulo, tome sua cruz cada dia, e siga-me". Ele não seria humano, à nossa semelhança, se estivesse proclamando um Deus que se compraz em mandar cruzes para nossos ombros e se sente honrado com nosso sofrimento e nossa resignação. Não! Um deus sádico não é o Deus de Jesus Cristo,  não é o nosso Deus.

   São Paulo é o grande teólogo da Cruz. Ele escreve: "Os judeus exigem milagres, os gregos querem sabedoria; mas nós anunciamos a Cruz de Nosso Sr. Jesus Cristo, escândalo para os judeus, loucura para os gregos, para nós, no entanto, Redenção" 2Cor. 1, 23-24.
   De fato, frente à cruz da pandemia, muitos se sentem "enlouquecidos", outros "escandalizados"; a maioria, porém, permanece em estado de perplexidade.

   É aí que entramos com a nossa fé. O que significa crer, orar, clamar a Deus, neste momento?Decerto não é esperar a intervenção da sua Onipotência para fazer algum passe de mágica e extirpar o mal de uma vez por todas. É, antes, deixar-se penetrar da Força Divina, com a mais profunda convicção. Pela via da Oração a Graça penetra em nós e nos enche de uma energia sobre-humana, capaz de enfrentar e superar todas as calamidades. É Deus que vem a nós, em nós permanece e, através de nós, opera maravilhas.

   Com este espírito, caminhemos, pela estrada da Quaresma, até a Páscoa. Ainda que tenhamos de adiá-la para junho ou para julho, nós vamos celebrá-la e ela será muito parecida com aquela que aconteceu, há mais de vinte séculos, entre a Sexta-feira da Paixão e o Domingo da Ressurreição.

QUINTA REFLEXÃO QUARESMAL- FREI ALOÍSIO FRAGOSO

   Três atitudes da parte das pessoas, em confronto com a pandemia COVID 19, com seus riscos, pavores e alertas, três atitudes se destacam: perplexidade, indignação, resignação. A primeira é uma reação espontânea da natureza, enquanto as duas outras dela procedem. Gostaria de apreciar uma delas, a resignação, uma vez que, das três, é a única que se constitui em uma ameaça à vida humana. Um sem número de mal-entendidos acabou  por atribuir-lhe o o direito de chamar-se  virtude cristã. Se a entendermos como um ponto de partida na dinâmica de quem se prepara para a luta, tudo bem, que seja uma virtude. Na maior parte dos casos,  contudo, ela não passa de conformismo.

    Muitos fiéis procuram legitimar-se invocando o testemunho exemplar de Jesus, daquele doce Nazareno que se declara "manso de humilde de coração"; daquele Messias sereno que o profeta Isaías chama de "Cordeiro que é levado ao matadouro e não abre a boca diante dos seus algozes". De fato, Jesus aponta a ternura e a mansidão como armas eficazes no combate à violência, geradoras de uma sensibilidade básica, capaz de resgatar a bondade original do ser humano e produzir nele o respeito pela integridade da vida e da Criação.

   Por outra parte, sua doutrina suscita outras formas de violência, na medida em que exige conversão, mudanças radicais de comportamento. Isso Ele mesmo assume com clareza ao declarar: "não vim trazer a paz e sim a espada" "Vim ao mundo trazer fogo e outra coisa não quero senão que ele acenda". Em confronto com a ordem estabelecida, Ele protesta à maneira dos antigos profetas. Expulsa os vendilhões do templo com o chicote na mão. Viola as tradições religiosas e sociais sempre que está em jogo a dignidade e a vida das pessoas. E desmascara os guardiães da lei: "hipócritas, a lei foi feita para o homem e não o homem para a lei".

    Ao definir o engajamento de seus seguidores neste mundo, usa metáforas carregadas de dinamismo transformador  ( eles  devem ser "semente na terra", "sal na comida", "fermento no pão", "chama acesa").

   Na última semana da Quaresma voltaremos a ouvir, vindas do Calvário, palavras de aparente total resignação: "Pai, perdoai, eles não sabem o que fazem". Mas logo a estas palavras segue-se um grito de protesto: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" Estes dois momentos devem ser entendidos em sua mútua relação. No instante final Jesus cobra do Pai uma resposta (que o Pai lhe dará em poucos dias).

   Por conseguinte Jesus elimina o equívoco da chamada resignação cristã.

   Um dia talvez tenhamos que responder a perguntas que hoje sobrepujam a nossa compreensão. Talvez venhamos a descobrir no coronavirus um "mensageiro" incumbido de avisar, depois de milhões de anos de agressões, que a natureza é paciente, mas não é resignada.

   ( A propósito, frente aos discursos alucinógenos do chefe da nação e seus asseclas, elevemos ao nível máximo nossa capacidade de indignação e deixemos a resignação para aqueles que não querem aprender as lições da História). 

CODIV 19 -  SEXTA REFLEXÃO QUARESMAL 

   Nesta última semana da Quaresma, eu gostaria de fazer uma confissão pessoal. Trata-se de um "pecado" que escrevo entre aspas porque estou em dúvida quanto à sua procedência. É obra de satanás ou é reação espontânea da natureza? Neste último caso, seria até salutar.

    Meu pecado é o seguinte: tenho tido sentimentos de SATISFAÇÃO com a pandemia do coronavirus. Nem mesmo a visão do mundo em pavor, da angústia das famílias, dos milhares de  mortos consegue impedir estes sentimentos, ao contrário, a perplexidade só os agrava ainda mais. Eles estão ligados à imaginação do que virá depois, das suas sequelas nas estruturas políticas, econômicas e sociais dos países. E também são estimulados por uma outra visão, meio patética, de numerosas faces deixando cair suas máscaras.

   A máscara dos "senhores do mundo" a gritar: "O Brasil não pode parar!" enquanto seus gritos chegam aos nossos ouvidos em sua versão verdadeira: "os nossos lucros  não podem parar (não importa o número de mortos)".

   A máscara dos que condenam qualquer intromissão do Estado em seus interesses empresariais, e agora exigem do Poder público por fim às medidas de "isolamento social" (danem-se as consequências).

   A máscara de falsos líderes religiosos, associando o vírus mortal a uma intervenção punitiva de Deus. Daí o medo dos penitentes e, em troca de exorcismos, mais poder e mais dinheiro para suas igrejas.

   A máscara das elites perfumadas, tentando disfarçar seu pavor frente ao nivelamento das classes sociais, que o vírus está produzindo.

   A máscara dos que já não conseguem esconder a verdadeira filosofia que dirige suas vidas, o darwinismo social. Este advoga a eliminação dos mais fracos e vulneráveis, a fim de dar lugar aos fortes, aos poderosos, que governarão e dominarão os povos. Para tanto nada mais útil do que uma pandemia, encarregada de cumprir está maldita tarefa, sem parecer que eles são os assassinos.

   Em suma, as máscaras do Capitalismo Neoliberal.

   Por fim chegam-me outros pensamentos que talvez favoreçam a absolvição do meu pecado:

    Estamos assistindo a cenas vivas de uma realidade histórica: diante de uma grande crise, tende a aflorar o lado bom dos seres humanos. Além disso, as nossas histórias pessoais comprovam que somente uma grande dor ou uma grande alegria é capaz de revelar a verdade das pessoas. Não é isso o que estamos vendo acontecer?  E Jesus não disse "A VERDADE VOS LIBERTARÁ?"

   Não tenho vocação profética, mas ando apostando no seguinte vaticínio: DEPOIS DO CORONAVIRUS O MUNDO NUNCA MAIS SERÁ O MESMO.

   PRA MELHOR! AMÉM!
  


CODIV 19  SÉTIMA REFLEXÃO QUARESMAL 

   Há quem se compraza em permanecer, horas a fio, em frente do aparelho de TV, vendo e ouvindo más notícias sobre o CODIV 19. Talvez haja quem experimente um certo deleite com a sensação generalizada de tsunami e pânico. A imensa maioria, contudo, se ressente, se deprime e, paulatinamente, vai se curvando ao peso dos acontecimentos.

   Por isso é preciso, sem fugir da realidade, refugiar-se no ideal. A este mundo ideal pertence o dom inefável da poesia. A poesia é também a linguagem de Deus. Um dos livros mais belos e apreciados da Bíblia está escrito numa linguagem poética, do começo até o fim. É o livro de Jó. A saga do sofrimento humano.

   Abalado por uma sucessão de tragédias que desaba sobre sua família, Jó reage com resignação: "O Senhor me deu, o Senhor me tirou. Bendito seja o nome do Senhor". Mas, logo que o veneno se infiltra em sua carne, ele muda de tom e de conduta. Em lugar de conformidade, revolta e blasfêmias: "Por que não morri no ventre de minha mãe? Por que não pereci ao sair de suas entranhas? Por que dois joelhos para me acolherem? Por que dois peitos para me amamentarem?"

   Incompreendido pelos amigos que procuram encontrar culpados ("talvez pecaste! Talvez pecaram teus filhos!") ele os expulsa da sua presença e interpela a Deus, diretamente: "Mostra-me por que razão me tratas assim! Encontras prazer em renegar a obra de tuas mãos?"

   O livro de Jó é um poema gerado pelo absurdo, frente a um sofrimento injustificado. A dor não dói menos por isso, mas dói humanamente, dói na direção não da morte e sim da transcendência.

   Ao final, quando um raio de luz penetra em seu espírito, ele se recompõe e se arrepende: "0' Deus, até agora meus ouvidos tinham ouvido falar de Ti. Mas agora os meus olhos te viram no reflexo da minha dor. Tem piedade de mim." E Jó recuperou todas as suas energias.

   Os grandes revolucionários da História nunca dispensaram o poder da poesia. Certamente não foi para amaciar os companheiros de luta, mas para fortalecê-los, que Che Guevara escreveu a sua famosa legenda: "hay que endurecer-se, pero sim perder la ternura, jamás'

   Faz alguns anos, enfrentando uma situação dolorosa, escrevi um soneto-desabafo que agora partilho com vocês:

 VIDA

Estou só e preciso de um barco
Para remar e remar até chegar
Ali onde alguém me espera
Estou só e preciso de um barco.

Estou triste e preciso cantar
E cantar e cantar até morrer
Feito um rouxinol apaixonado
Sendo isto lenda ou realidade.

Estou perdido e preciso de um mapa
Para ter certeza do caminho
Mas é inútil um mapa, não há caminhos.

Estou cansado e preciso morrer
Morrer de fato, absolutamente
Estou cansado e preciso VIVER!

 Entre estes "morrer" e "VIVER" situa-se o mistério da Páscoa que, breve, vamos celebrar, animados pela certeza que a Vida prevalecerá. Sempre!  



COVID 19 -OITAVA REFLEXÃO QUARESMAL 



    Entre as sequelas causadas pela pandemia do coronavirus, há uma que eu rezo para que seja irreversível, a saber, o colapso de uma concepção de felicidade. Ser feliz  é uma aspiração congênita de todos os seres humanos, a única que goza de aprovação universal. Como escreve Teilhard de Chardin: "todos os seres vivos se movem e se orientam, necessariamente, na direção do que lhes dá felicidade".

    Em nossa chamada "sociedade da gratificação imediata', a felicidade foi atrelada ao prazer sensorial. "Quer ser feliz? Faça o que lhe dá prazer, agora! Conviva com quem lhe proporciona maior prazer,  agora! Se tiver que fazer algum sacrifício, que seja por algo que torne seu prazer mais intenso e duradouro. Fora do prazer não há felicidade."
    Quem é que paga  o preço destas sensações prazerosas?  E lhes garante segurança e duração? - É o dinheiro, somente o dinheiro, pois elas são movidas a objetos de consumo e nutridas por conforto, luxo, abundância de sabores e benesses.

    A fim de legitimar-se perante a "consciência" do mundo, o Poder Econômico lhes confere uma aparência de felicidade e, aos seus comensais, uma auréola de pessoas muito felizes. Desta forma, a multidão dos excluídos vão ver nestas pessoas a imagem dos seus sonhos. Todos devíamos ser assim. Vamos batalhar para chegar lá também.

    Daí o ser feliz transforma-se numa obrigação. É proibido não ser feliz. Se você não o for, minta, fingindo ser. Só não quebre a corrente das pessoas felizes.

    Aos poucos a procura da felicidade toma a forma de uma antinomia, um confronto de dois polos. Uns defendem que ninguém tem o direito de ser feliz dentro de um mundo infeliz. Outros, ao contrário, garantem que é possível ser feliz, sem levar em conta a situação do mundo em volta. Os primeiros rebatem: o que nos faz infelizes logo percebemos (por ex. a morte de uma pessoa querida), enquanto o que nos torna felizes não dá nenhuma segurança ou certeza (o dinheiro, o poder, o sucesso). Tudo bem, retrucam os demais, compensaremos sua brevidade com a intensidade de nossas experiências.

    Em meio a esta discussão, infiltra-se um monstrinho invisível chamado coronavirus. De repente calam-se aquelas vozes; rompe-se a segurança do Poder Econômico; desnuda-se o "discreto charme da burguesia" e todos acabam nivelados pelo mesmo medo.

     Em contra-partida, descobre-se uma infinidade de outras maneiras de ser feliz, gratuitamente.

    A Quaresma nos convida a contemplar o Calvário e ouvir a voz Do Crucificado: "ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus".

    Ser feliz, dando a vida, não significa sacrificar a própria felicidade, mas sim  dar-lhe um sentido superior, fazê-la transcender os seus limites e perpetuar-se.

    Neste mundo não há felicidade perpétua, mas sim alegrias mais ou menos duráveis. É preciso identificar aquilo que nos faz felizes, no limite da lucidez e não da ilusão. E, a seguir procurar o prazer das alegrias simples, no vastíssimo espaço da convivência humana. São estas alegrias que a quarentena compulsória destes dias oferece a quem está atento e confiante. Aí se abre um caminho luminoso para a próxima Páscoa.

DCOVID 19 - DOMINGO DE RAMOS - NONA REFLEXÃO QUARESMAL

    Tem início a Semana Santa na Liturgia da nossa Igreja. Estávamos acostumados a carregar a Cruz do Calvário simbolicamente, seguindo os passos de Jesus em sua Via-Sacra. Esta semana, no entanto, vamos carregá-la de verdade, na dura realidade de uma pandemia.

    Contudo, o poder que a tornou suportável para Jesus é o mesmo que a torna suportável para nós. É o poder da Fé.

    Na luz desta Fé, observamos como as cenas e os personagens de ontem se repetem hoje. As autoridades judaicas condenaram Jesus à morte com o seguinte veredito: "é preciso que ele morra para que não pereça toda a nação" Jo.11,50. Como  não escutar o eco destas palavras na boca dos que proclamam: "é preciso que morram milhares de brasileiros para que não pereça a Economia do país" !

    Em meio a este cenário, surgem os mercadores da fé, negociando curas milagrosas. Eles lembram a figura do rei Herodes a reclamar de Pilatos a presença de Jesus porque ele queria divertir-se assistindo a um de seus milagres. Diante de Herodes, Jesus se cala, impassível.

   O verdadeiro milagre está acontecendo diariamente, o milagre do Amor, dos que arriscam suas vidas, a fim de salvar a dos infectados. O milagre da bondade humana que, infelizmente, parece precisar de grandes sofrimentos para aflorar e realizar prodígios.

    Repetem-se até mesmo os gritos de desespero do Horto e do Calvário: "Pai, afasta de mim este cálice"! "Meu Deus, por que me abandonaste?"

    Pouco tempo durou a solidão dos primeiros cristãos. Logo eles começam a fazer outra leitura dos fatos, começam a compreender  que, naquela morte, já estavam plantadas as sementes da ressurreição. Pois o Filho de Deus não morrera por morrer, não se rendera a um destino cego. Ele dera a vida por amor. Com o seu Sacrifício amoroso, estávamos redimidos para sempre.

    Não devemos passar ao largo das provas da culpa humana. A destruição da consciência ética, gerando sistemas opressores, é imensamente mais mortífera do que a COVID  19. E a repetição interminável de crimes ecológicos, no trato com a Mãe Terra, leva-nos  a terríveis impasses, como este de nem sabermos de onde vem o "inimigo".

    Apesar de tudo, a tragédia do COVID 19 carrega no seu interior a possibilidade de superação. Há algo de sacramental no drama de suas vítimas, pois elas contribuem para salvar outras vidas, na medida em que, proporcionalmente ao seu crescimento, decresce o avanço numérico da pandemia.


    A cruz da pandemia nos revela que onde há dor há urgência de amor. E a Cruz do Calvário nos assegura que Deus nunca abandona seus filhos e filhas. Ele os liberta do desespero, convertendo nossas dores em "dores de parto para uma Vida Nova"(S. Paulo). Com três palavras mágicas o mesmo Paulo expressa este Mistério da Páscoa permanente: "o mundo está grávido de Deus". O mundo somos nós, estamos grávidos de Deus, em outras palavras, estamos gestando, pela Graça, um Mundo Novo. Daí, toda cruz é portadora da ressurreição, desde que enxerguemos em sua obscuridade, a luz do Cristo ressuscitado. Amém. 

FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

Um comentário:

  1. Grata, Frei, pela sua enorme generosidade para conosco!
    Deus cuide do senhor, sempre!

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