por Maria Clara Lucchetti Bingemer
A revelação da misericórdia de Deus na Sagrada Escritura atinge seu clímax na encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Ele é o pleno cumprimento das promessas de Deus e é a própria misericórdia de Deus sob forma humana, andando pelos caminhos de terra da humanidade.
Grandes teólogos da atualidade constroem toda a sua teologia e sua reflexão sobre o mistério de Jesus Cristo através das chaves da misericórdia e da compaixão. No Novo Testamento, portanto, as narrativas sobre Jesus de Nazaré, reconhecido e proclamado como o Cristo, o Ungido de Deus, apontam para uma responsabilidade global de todos aqueles e aquelas que se dispõem a segui-lo e servi-lo. No entanto, a universalidade de tal responsabilidade não se revela apenas nem mesmo principalmente com respeito ao pecado do mundo. E sim sobre o sofrimento no mundo. O primeiro olhar de Jesus não se dirige ao pecado, mas ao sofrimento dos outros.
Por isso, é um olhar essencialmente “misericordioso” e não julgador. Aí reside sua força infinita. É um olhar inclusivo, que abraça todos os que padecem alguma pobreza, ou indigência, a falta de algo vital que lhes dê plenitude em sua existência. Sob o abrigo protetor desta misericórdia entram os pobres, os doentes, as mulheres, as crianças, os marginalizados por qualquer motivo da vida social, política e religiosa.
Esse que as nações esperavam não nasce em berço real, mas na pobreza de uma manjedoura, de pais migrantes e que não têm lugar onde dormir, tendo que vir à luz em um estábulo de animais. Os Evangelhos de Mateus e Lucas descrevem seu nascimento testemunhado por pobres pastores e por desconhecidos estrangeiros vindos do Oriente. Ainda pequeno será perseguido juntamente com todas os outros bebês de sua idade pelo rei Herodes, que temia seu poder e realeza. Viveu como refugiado no Egito e aprendeu o ofício de carpinteiro com José, seu pai. Cresceu ao lado dos pais até o dia em que se manifesta a Israel promulgando um novo estilo de vida.
Qual a novidade que traz este Nazareno? É aquela que diz que a misericórdia e a compaixão passam adiante da lei. Ao mesmo tempo em que ia à sinagoga, guardava o sábado e cumpria os preceitos de seu povo, Jesus nunca hesitou em romper com essa lei quando o sofrimento do outro assim o exigia: tocou leprosos, curou intencionalmente no sábado, durante o repouso sagrado judeu; tocou cadáveres, não temendo a impureza. Mais ainda: defendeu seus discípulos quando comiam junto com ele em companhia de pecadores e não crentes, e não insistia em que praticassem as infinitas abluções da pureza ritual.
Jesus não temia tocar as pessoas. Curou muitas tocando-as e trazendo-as de volta à saúde, à vida e à salvação. Seu amor pelos pobres inclinou-o instintivamente para aqueles que são mais feridos pelo sofrimento, agredidos em sua dignidade fundamental de pessoas e impedidos de erguer-se e alcançar a plena estatura de filhos de Deus. Os pobres em seus mais diversos matizes - doença, pecado, idade, sexo, condição social – são os preferidos de seu coração.
Assim fazendo manifesta a misericórdia infinita do coração do Pai. Longe de ser uma exclusão, essa predileção pelos oprimidos de toda sorte é um sinal de totalidade. Sobre os pobres descansa, inteira, a bem-aventurança divina. Deles e delas é, antes de todos os demais, o Reino de Deus em plenitude, não apesar de sua pobreza, mas por causa dela, que toca o coração de Deus e o faz vibrar de amorosa compaixão e misericórdia.
Além de praticar a misericórdia, Jesus anunciou com toda a sua vida a misericórdia do Deus de Abrãao, Isaac e Jacó, que ele chama de Pai. Trata-se de um Deus que se rege pela Graça e não pelo mérito. Um Deus que prefere o publicano pecador arrependido do que o orgulhoso fariseu que, diante do Senhor, desfia seu currículo e seus méritos. Um Deus que no banquete do fariseu Simão valoriza o gesto da mulher de má vida, que rompe todas as prescrições rituais para mostrar seu imenso amor lavando-lhe os pés com suas lágrimas, enxugando-os com seus cabelos e derramando precioso perfume sobre os mesmos. É o Deus que valoriza e elogia o comportamento do samaritano idólatra contra o levita e o sacerdote guardiães da lei, apenas porque soube parar e atender o ferido à beira do caminho. É o Deus Pai de misericórdia e gratuidade, que dá festa e mata novilho gordo para celebrar a volta do filho que se foi e gastou todos os seus bens.
A misericórdia de Deus revelada em Jesus é a chave para entender esse imenso e infinito mistério que celebramos no Natal: um Deus que se faz humano; que assume a carne pecadora e mortal para revelar-nos o caminho da verdadeira vida. Uma criança que nasce perigosamente nas periferias do mundo e que carrega consigo todo o imenso segredo da vida e da morte, da salvação e da perdição. Um inocente e indefeso bebê, que entra na vida exposto aos riscos constantes e enormes de nascer, viver e morrer. E tudo isso por pura misericórdia. Como bem diz o Canto de Natal, diante deste mistério: “Vinde, adoremos!”
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
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