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quarta-feira, 7 de julho de 2021

OBRIGADO, CARA AMIGA, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(05/07/2021)

 

     Depois de divulgar, seguidamente, dois artigos sobre a loucura e quatro sobre a cegueira, fui premiado com uma surpresa, uma obra intitulada "Ensaio Sobre a Lucidez". Na mesma embalagem, uma gentil dedicatória: "....para dar continuidade às tuas profundas reflexões sobre a cegueira, e considerando a proximidade do período eleitoral, envio-te esta obra de Saramago, a ti, que tantas vezes sentes o preço da lucidez".

 

     Obrigado, cara amiga, sei que não foi esta a sua intenção, mas fica sendo como se fosse um sutil protesto contra a unilateralidade: tratar seis vezes seguidas da loucura e da cegueira e nenhuma vez dos seus opostos, a sanidade e a lucidez!  Isso maltrata o estado de espírito de leitores e leitoras, já tão afetado pela cacofonia diária do noticiário nacional, onde, numa visão imediata dos fatos, o placar marca 7 a 1 em favor das trevas.

 

     É certo que na História da Humanidade, e mais ainda na História da Salvação, a luz deve ser procurada em meio às trevas, sua claridade não se revela de imediato, precisa do olhar do espírito, a fim de tornar-se visível. Mesmo assim, não se tem o direito de agredir a alma das pessoas com uma procissão de más notícias, sem ao menos uma velinha acesa em homenagem à Esperança. Obrigado, cara amiga, por essa involuntária fisgada na consciência do autor, e também pela chave inspiradora de uma nova Reflexão.

 

     Na contra-capa da referida obra, estão escritas palavras proféticas. Daqui a alguns anos, elas valerão como uma espécie de retrato vivo dos sombrios tempos que enfrentamos agora:

 

     "Falemos abertamente sobre o que foi a nossa vida, se foi vida aquilo, durante o tempo em que estivemos cegos, que os jornais recordem, que os escritores escrevam, que a televisão mostre as imagens da cidade tomadas depois de termos recuperado a visão, convençam-se as pessoas a falar dos males de toda espécie que tiveram de suportar, falem dos mortos, dos desaparecidos, das ruínas, dos incêndios, do  lixo, da podridão, e depois, quando tivermos arrancado os farrapos da falsa normalidade com que temos andado a querer tapar a chaga, diremos que a cegueira desses dias regressou sob uma nova forma, chamaremos a atenção da gente sobre o paralelo entre a brancura da cegueira de há quatro anos e o voto branco de agora..."

     Não tenho subsídios para me alongar em apreciações sobre esta nova obra de Saramago, pois estou nas primeiras páginas. Apenas refiro que se trata de uma alegoria aos ritos da democracia escondendo   a fragilidade do sistema político e de suas diversas instituições. Numa manhã de votação, igual a tantas outras, os funcionários se deparam com um fenômeno alarmante, que se alastra país afora: a maioria absoluta dos eleitores votaram em branco. A partir deste fato, que Saramago chama de "corte de energia cívica", o seu gênio vai destilando seu veneno benfazejo de críticas sobre a sociedade global, à procura da lucidez.

     Aproveito esta metáfora para ampliar a imagem do "voto em branco", aplicando-a não só ao passageiro movimento da mão na urna, mas, de modo especial, à conduta de passividade e indiferença de numerosas pessoas. Isso é também sintoma de trevas, as da mediocridade, as da ignorância, as do medo.

 

     Proponho-me, no entanto, a dar um enfoque não à escuridão e sim à luz que nela se retrai à espera dos olhos da Fé.

     A Bíblia usa continuamente esta linguagem de contrastes entre luz e trevas, corpo e alma, guerra e paz, vida e morte. O profeta Isaías anuncia a vinda do Redentor com estas palavras: "O povo que andava nas trevas viu uma grande luz" Is.9,2. O nascimento do Redentor é assinalado por uma estrela que brilha sobre a solidão de uma Criança pobre deitada numa manjedoura, numa obscura aldeia da Judéia. O próprio Jesus anima seus ouvintes, após adverti-los sobre grandes tragédias que virão, com estas palavras: " quando estas coisas começarem a acontecer, levantem suas cabeças e exultem, pois é a sua libertação que está chegando" Lc. 21,28.

      Esta visão dialética não é monopólio do Cristianismo, encontra-se em todos os tempos e crenças. Como diz, numa espécie de síntese universal, este provérbio latino: "amor et melle et felle fecundissimus" (o amor é fecundíssimo em mel e fel).

     Com a entrada de Jesus Cristo na História da Humanidade, surge uma visão inteiramente nova. Não se trata mais de alienar-se do meio das trevas para ir ao encontro da luz, trata-se, antes, de entrar nesta batalha, e desvendar o grande  mistério:  é no mesmo campo onde opera o mal, que se oculta o bem, é do mesmo túmulo onde jaz a morte, que ressurge a vida nova. Jesus compara o Reino de Deus a uma mulher na hora do parto; ela está temerosa pelas dores iminentes e, ao mesmo tempo, está feliz por causa da nova vida" Cf. Jo.16,21. O seu apóstolo Paulo coloca-se no lugar desta mulher, numa carta aos cristãos de Corinto: "Sofro em mim como dores de parto, até que o Cristo seja gerado em vocês" 1Cor.4,14-15. Santo Agostinho se serve da mesma imagem para afirmar "o mundo está grávido de Deus".

 

     E nós pensamos, ao final: ora, se o mundo está grávido de Deus, o que poderá nascer desta gravidez senão a Plenitude da Vida? Amém!

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

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