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domingo, 4 de julho de 2021

VIVER E RESISTIR, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(27/06/2021)

 

      É nas grandes crises ou nas grandes alegrias que se revela a verdade oculta das pessoas. A pandemia do coronavirus tem sido disso uma prova contundente. Ela liberou, dos porões do inconsciente coletivo e individual, uma série de monstros, de bruxas, de insanidades, de rancores clandestinos,  de fraturas mal tratadas, de traumas e recalques. O estrago foi enorme e não poupou nem amizades pessoais nem laços de sangue familiares.

 

     Em meio a estas avarias, voltou à tona uma velha e desgastada pergunta: a vida é uma bênção ou um fardo? O ser humano é anjo ou é demônio?  A pandemia deu argumentos de sobra para as duas torcidas. Numerosas vidas que voluntariamente sacrificaram-se para salvar outras tantas vidas reacenderam nossa confiança na bondade humana. Por outra parte, a insensibilidade e o descaso criminoso da parte das Cúpulas políticas, do Poder econômico e de muitos indivíduos misturaram o joio com o trigo e deixaram dúvidas sobre qual dos dois há de prevalecer.

 

     O que fazer deste sentimento de revolta reprimido, arriscando-se a virar ódio ou depressão?  Deixar-nos mover pelo ódio é algo autofágico, o ódio se devora a si mesmo. Odiar é reconhecer a própria inferioridade, o próprio medo, pois não se justifica odiar o inimigo quando acreditamos convictamente em nossas condições de vencê-lo.

 

     E o mandamento maior do amor, onde fica? Ele está inserido dentro da luta. E naturalmente corre riscos. Um destes riscos é o de confinar-se em gestos de caridade. Matar a fome dos esfaimados é dever elementar e prioritário. Nenhum general abandona seu soldado ferido, mesmo com risco de comprometer os planos da batalha. Fome não tem partido político nem ideologia nem religião nem nada, só tem pressa. Mas não podemos esquecer que ela também é arma na mão dos opressores; eles sabem que o faminto não quer mudanças, só quer comida. Daí a importância de juntarmos a este empenho outras iniciativas que impeçam  trocar direitos por dependência.

 

     Temos nos deparado diariamente com o espantalho de mortes brutais; são mortes matadas, muito mais do que mortes morridas. Milhares morreram para que alguns ganhassem muito dinheiro. Em favor de nós mesmos, pela nossa dor, choramos, mas, em homenagem a eles, aos que partiram, e em defesa de outras vidas, lutemos sem tréguas. ("Oh fazedores de morte, que não cessais de fazê-la, em vossa maligna sorte de redigir pesadelos, quando deixareis à vida a chance de ser vivida?" Drumond de Andade). A despeito desta justa raiva, não há razão de proibir-nos festejar a vida, manter o bom humor, cultivar alegrias, repartir o prazer. Sem prazer não há vida e o bom humor ativa nosso senso de proporção, impede que o excesso de raivas nos leve à desesperança.

 

     Por um bom tempo ainda caminharemos em meio a sombras, por vezes em meio a trevas. Nem por isso deixamos de ser conduzidos pela luz. "Não há maior tragédia do que ter medo da luz", escreve o filósofo Platão.

 

     Quanto a nós, pomos toda confiança em Alguém que disse "Eu sou a Luz do mundo".

       Sua luz brilhou ao máximo na Cruz do Calvário. Foi aí que Ele provou sua absoluta coerência entre palavra e vida, entre viver e resistir, preferindo o sacrifício total à recusa da sua missão.  Como podemos ter medo,  estando na companhia de Quem por nós despojou-se até a  morte? Seja Ele nosso Guia, enquanto rezamos o salmo 144: "Bendito seja o Senhor, meu rochedo, que adestrou minhas mãos para a luta". Amém.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

Um comentário:

  1. Como sempre, texto excelente e inquietante! Destaque para a frase “Odiar é reconhecer a própria inferioridade, o próprio medo, pois não se justifica odiar o inimigo quando acreditamos convictamente em nossas condições de vencê-lo.”

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