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sábado, 9 de março de 2013

Ele vinha sem muita conversa .....



por REJANE MENEZES

Uma homenagem ao meu compositor favorito.
 

Ele compunha, tocava e cantava e falava de mar, de lua, de trem e de amores, perdidos, achados, amados enfim.

Seu olhar, claro como o dia, sorria tímido, como tímido era o sorriso que se esboçava em sua boca ávida por anunciar um novo dia chegando, querendo acreditar que ele iria raiar, só porque sua  cantiga anunciou.

     Foi assim que, lá pelos idos de 1966, assisti deslumbrada, no alto dos meus 11 anos, um jovem meio sem jeito, encantar a todos que ouviam a banda passar. Olhos grudados na TV, tão em preto e branco quanto o retrato que o maestro soberano ajudaria a colecionar um pouco mais tarde, vi as imagens do Festival de Música Popular Brasileira invadir as casas e os corações dos brasileiros que torciam por suas músicas preferidas, aprendiam as letras e cantavam, todos juntos, como um coro gigantesco ecoando Brasil afora, pra ver a banda passar, tocando coisas de amor.

      Pedro Pedreiro esperava o trem, enquanto ninguém chegava do mar. Mas e Cristina, será que ela volta? Talvez fosse no nó de marinheiro de Nicanor que Carolina pensasse, com seus olhos tristes e por isso, não visse o tempo passar por sua janela, que bem poderia estar ao lado de Januária, pra onde o sol apontava.

       Um tempo que foi construído tijolo por tijolo em um desenho mágico, esperando o carnaval chegar, mas, ao contrário do velho que deixou a vida sem bagagem, aquele moço de olhos vivos escreve a sua história e a história de seu tempo, cantando a vida, sendo cada música ela própria, uma história.

     Um tempo que foi passando e o moço acompanhando, de dentro do bonde da história, porque este, ele nunca perdeu.

       Exilado, sabia que voltaria para o seu lugar, para ouvir de novo a Sabiá. De lá, pediu perdão por uma omissão que nunca teve, sempre presente aos mais importantes momentos da luta pela redemocratização do país, denunciando, com graça e poesia, as mazelas de um povo cerceado, amordaçado, que sofria com a tortura, com a miséria, com o atraso.

Perseguido pela censura, dava asas à imaginação e, de uma forma ou de outra, conseguia burlar a pouca “inteligência” reinante à época da ditadura militar.

     Político, cronista, amante, trovador, malandro, assim foram divididas as suas canções em uma coleção de cinco CDs, lançados há vários anos. Mas nem de longe, esta coleção, ou esta classificação, fez jus ao talento, à criatividade, à poesia deste grande artista.

Algumas músicas de Chico, são verdadeiras pérolas, de simetria, de musicalidade, de conteúdo. O fato de ser filho de um historiador, com certeza contribuiu para que em suas letras, encontremos um pouco da cultura do povo brasileiro. 

      Só quem conhece a religiosidade do interior do país, pode entender a frase de Vai Passar: "seus filhos, erravam cegos pelo continente, levavam pedras feito penitentes, erguendo estranhas catedrais". Ou ainda, na Permuta dos santos, dele e de Edu Lobo (outro genial) : "mas se a vida mesmo assim não melhorar, os beatos vão largar a boa - fé e as paróquias com seus santos tudo  fora de lugar, Santo que quiser voltar pra casa só se for a pé". 

     Quem pode ficar alheio ao romantismo de Valsinha, dele e do poetinha Vinícius, onde "um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar ... e ... ela se pôs bonita como há muito tempo não queria ousar, com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar..."? Ou à declaração de amor em Eu te amo (parceria com Jobim): " se entornaste a nossa sorte pelo chão, se na bagunça do teu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu... e ... como, se na desordem do armário embutido, meu paletó enlaça o teu vestido e o meu sapato ainda pisa no teu..."? Ou ainda em Vitrines, resistir ao pai zeloso, que seguindo a filha em suas saídas à noite, lhe diz que: "passas sem ver teu vigia, catando a poesia, que entornas no chão"? Não podendo deixar de lado a suavidade de Até pensei: "junto a mim morava a minha amada, de olhos claros como o dia, lá o meu olhar vivia de sonho e fantasia e a dona dos olhos nem via" e nem a força do amor de Sem fantasia: "Vem meu menino vadio, vem sem mentir pra você ... e agora que cheguei eu quero a recompensa, eu quero a prenda imensa dos carinhos teus".
 

      Quem por acaso definiu melhor a dor de uma saudade, do que Chico em Pedaço de mim: " a saudade é arrumar o quarto, do filho que já morreu..." ? Ou em  A Rita, ao lamentar: "a Rita levou meu sorriso, o sorriso dela meu assunto ...e além de tudo, me deixou mudo, o violão"? E Cadê você (com João Donato): "a gente quase não se vê, eu só queria lhe lembrar, me dê notícias de você, me deu vontade de voltar" ou Todo sentimento (com Cristovão Bastos): "depois de te perder, te encontro com certeza, talvez no tempo da delicadeza... apenas seguirei com encantado ao lado teu ".


     E a dor de amor que chega ao fim? Poderia citar três obras-primas sobre este tema -  Retrato em branco e preto, de Chico e Jobim: "vou colecionar mais um soneto, outro retrato em branco e preto a maltratar meu coração";  e duas em parceria com Toquinho- Desencontro: "não sei se você ainda é a mesma, ou se cortou os cabelos, rasgou o que é meu, se ainda tem saudade e sofre como eu, ou tudo já passou, já tem um novo amor, já me esqueceu";  e Lua cheia : "Meu violão ficou tão triste, pudera, quisera abrir janelas, fazer serão, mas você me navegou mares tão diversos e eu fiquei sem versos e eu fique em vão". 

     Quem cantou com mais poesia, a espera de um filho, como em Mulher vou dizer quanto eu te amo: "cantando a flor que nós plantamos, que veio a tempo neste tempo que carece, de um carinho, de uma prece, de um sorriso, de um encanto ...eu te dedico este meu canto de louvor, ao fruto mais bendito deste nosso amor.."?

      E poderia ser mais bela a saudação à chegada de sua primeira filha, Bem Vinda: " venha iluminar meu quarto escuro, venha entrando como o ar puro, todo novo da manhã ... ah! que bom que você veio e você chegou tão linda, eu não cantei em vão, bem-vinda no meu coração. E o seu angustiado “Acalanto”, querendo para a  filha um país melhor: ”eu vou sair por aí afora, atrás da aurora mais serena”.  E mais tarde, cantou para as três filhas As minhas meninas: "olha as minhas meninas , pra onde é que elas vão? Se já saem sozinhas as notas da minha canção? ...as meninas são minhas, só minhas, na minha ilusão ..." Anos depois, o “voito” de Chiquinho, desvenda os mistérios do que se passa em sua cabecinha em “Você Você: “Quando você não dorme, quem é que você chama? Que blusa você com o seu cheiro deixou na minha cama?”

     Qual compositor conseguiu traduzir com tanta propriedade, os diversos sentimentos do universo feminino, como em Atrás da porta, em parceria com Francis Hime: "e me vingar a qualquer preço, te adorando pelo avesso, pra mostrar que ainda sou tua";  - Olhos nos olhos: "quando você precisar de mim, você sabe que a casa é sempre sua, venha sim, olhos nos olhos, quero ver o que você faz, ao sentir que sem você eu passo bem demais"; -  Com açúcar com afeto: "e ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado, ainda quis me aborrecer, qual o que, logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato e abro os meus braços pra você"; Palavra de Mulher : "Pode ser que passe o nosso tempo, como qualquer primavera, me espera, vou voltar" ou ainda O meu amor: "eu sou sua menina viu? Ele é o ,eu rapaz. Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz"; Terezinha: "foi chegando sorrateiro e antes que eu dissesse não, se instalou feito um posseiro, dentro do meu coração"; sem deixar de fora Folhetim: "pois já não vales nada, és página virada, descartada do meu folhetim". Além das músicas que retratam as mulheres como Carolina, Januária, Ana de Amsterdã   Bárbara, Cecília, Renata Maria, entre outras.

      Não podemos esquecer de “Geni” , uma genial e divertida  opereta, que fala até do Zepelim.

     Tudo isso, sem falar no Chico contestador, que transformou em música, o sentimento de um povo sofrido, que clamava por justiça e liberdade- Apesar de você, Quando o carnaval chegar, Meu caro amigo (parceria com Francis Hime), O que será (com três letras diferentes para a mesma música), Sabiá (parceria com Jobim), Angélica (parceria com Miltinho), Bye Bye Brasil (com Roberto Menescal), Pelas tabelas, Tanto mar, Cálice ( com Gilberto Gil), Vence na vida quem diz sim e Fado Tropical (com Ruy Guerra), Deus lhe pague, Samba de Orly (com Vinicus e Toquinho), Fantasia, Rosa dos ventos, Pelas Tabelas, Vai Passar, Tanto Mar e muitas outras.

      Chico escreveu valsa, samba, baião, frevo, opereta, música popular brasileira da "melhor qualidade", como costuma dizer uma amiga minha. Cantou o amor em "língua de criança - João e Maria: "Não, não fuja não, finja que agora eu era o seu brinquedo, eu era o seu peão, o seu bicho preferido" - cantou para as irmãs, Maninha: "Mas não me deixe assim, tão sozinho a me torturar, um dia ele vai embora, maninha, pra nunca mais voltar" ; homenageou a família, os compositores e cantores e cantoras brasileiros em Para Todos: "o meu pai era paulista, meu avô pernambucano ...". Compôs uma música chamada  Corrente, onde versos podem ser lidos de frente para trás, dispostos livremente, de acordo com a preferência de quem for cantar. Homenageou o operário da Construção, com frases que além de sua beleza e simetria, vão sendo misturadas, ao longo da música, mantendo sempre a rima e a coerência.  Homenageou, ao mesmo tempo que denunciou como vivem os menores abandonados em Pivete(com Francis Hime), o adolescente levado ao crime em “Meu Guri”,o emigrante nordestino, em Brejo da cruz e os moradores das ruas em “Ode aos Ratos”, estas duas últimas com letras tão elaboradas que os mais desatentos não conseguirão entender a sua mensagem. Cantou ao amor eterno em Futuros amantes : "futuros amantes quiçá se amarão sem saber com o amor que eu um dia deixei pra você".

     E os sonhos? Alguém terá cantado com mais propriedade? Não Sonho mais:  “Hoje eu sonhei contigo e caí da cama, amor não liga, não me castiga, diz que me ama e eu não sonho mais”. Ou ainda “Sonhos sonhos são”: “Sei que é sonho Não porque da varanda atiro pérolas, E a legião de famintos se engalfinha, não porque voa nosso jato roçando catedrais, mas porque na verdade não me queres mais aliás, nunca na vida foste minha e “Outros Sonhos”: Sonhei que o fogo gelou, Sonhei que a neve fervia, Sonhei que ela corava, Quando me via....” 

     Fazendo versões, nos brindou com: “Sonho Impossível”: sonhar, mais um sonho impossível, lutar, quando é fácil ceder.. e “Minha História”: minha mãe não tardou a alertar toda a vizinhança, a mostrar que ali estava bem ais que uma simples criança....”Traduziu e adaptou o musical infantil Os saltibancos , que inclui a belíssima  Minha canção, onde cada verso começa seguindo a escala musical.

     Gota D’Água, Ópera do Malandro, Geni, Roda Viva, Grande Circo Místico e Cambaio (com Edu Lobo), musicais que contam, através das músicas e coreografias, histórias ora fortes, ora fantásticas, ora reais, mas sempre belas.

     Misturando poesia e denúncia, amor e saudade, alegria e tristeza,  Chico vem dando o seu recado, ao longo de todos esses anos de carreira. E olha que lá se vão mais de quatro décadas.

Dia destes, um amigo meu fez um surpresa: deu-me de presente uma verdadeira relíquia: um Cd chamado "Os grandes sucessos da Paramount". Nele está uma música chamada Desencanto, gravada por Yvette, em 16 de dezembro de 1964, no show "Mens Sana in Corpore Samba".  O autor? Chico Buarque, é claro.

         Ele fez parceria com os maiores compositores de nossa música. Afora os já citados acima, tem ainda parcerias com Vinicius de Moraes e Garoto - Gente humilde- , Vinicius e Jobin - Olha Maria - com Milton Nascimento- Cio da terra e 1º de maio- João Cabral de Mello Neto - Morte e vida Severina, funeral de um lavrador -  Caetano Veloso - Como um samba de adeus, Vai levando-, Vinícius Cantuária - Ludo Real -, Augusto Beal - Mulheres de Atenas, Luis Carlos Ramos - Outra noite - Djavan - Tanta saudade- Domingunhos -Tantas palavras - João Bosco - Mano a mano- sem esquecer, é claro de Cecília Meireles, com o texto do "Romanceiro da Inconfidência", musicado por Chico.

      Menestrel, trovador, romântico, contestador, subversivo, qualquer que seja o estilo, qualquer que seja o parceiro, qualquer que seja a fase, a obra de Chico é inigualável. E olha que aqui eu só falei da obra musical e mesmo assim, de parte dela. 

     Mesmo que não lance mais discos com a frequência, que faça um show por década, nada disso tem importância. Porque Chico não é um artista que precise ficar compondo freneticamente para não perder os fãs.

     Chico não é para ser simplesmente ouvido ou cantado. É para ser apreciado e, por que não dizer, degustado?


        O problema é que na maioria das vezes, canta-se uma música, apenas porque a melodia é agradável e não por sua letra. Mas, as letras de Chico Buarque, são como um vinho de safra especial: têm que ser sorvidas com calma, saboreando cada palavra, deixando-se inebriar por elas, descobrindo o prazer que elas proporcionam ao ouvido e à alma... como o “sol que ensolarará a estrada dela, a lua alumiará o mar”, há que se deixar invadir.

      Este é Chico: genial, talentoso, único e generoso, tão genoroso que distribui com o mundo o seu talento.

      Ah! E não é que eu já ia me esquecendo: Acorda amor, é o Julinho da Adelaide.

Mas isso, já uma outra história.

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