Por
Marcelo Barros
Depois de uma campanha eleitoral aguerrida, somos cada vez mais
chamados a votar pelo cuidado e proteção dos bens que são comuns a todo ser
vivo e especialmente à humanidade. Todos acompanham com preocupação a carência
de água em regiões como São Paulo. Embora a responsabilidade direta seja dos
poderes públicos, o cuidado com a água, a qualidade do ar e a saúde do planeta
Terra são tão importantes que não podemos confiá-los apenas a governos e
técnicos de plantão. Todos somos responsáveis pela vida e pelo ambiente em que
vivemos.
Uma Rede de organizações de solidariedade na Europa afirma: “Os bens
comuns podem ser definidos como o conjunto de recursos, meios e práticas que
permitem a um grupo se constituir como comunidade, capaz de assegurar a todos o
direito a uma vida digna” (Nigrizia, gennaio 2011, p. 79). Esses
bens são necessários, indispensáveis e insubstituíveis para a vida de todas as
pessoas. Por isso, ninguém deveria ter o direito de se apropriar deles. Tomemos
o exemplo da água. A água potável é tratada e transportada até nossa casa. É
justo pagar a uma empresa por esse serviço, mas a água em si não tem preço. Se
um norte-americano usa, em média, 44 litros de água por dia, enquanto a maioria
dos africanos não tem acesso nem a um litro, pode-se pedir que os maiores
consumidores paguem pelo seu excesso, para custear o acesso a quem não pode ter
nem o necessário. Mas, a quantidade mínima de água necessária às pessoas,
durante um dia, deve ser garantida gratuitamente a todos. Do mesmo modo, toda a
humanidade tem direito aos bens indispensáveis à vida. A partir desse critério,
atualmente, no mundo inteiro, vários movimentos e organizações civis trabalham
para que o Ar, a Água, a Saúde, o Conhecimento e a Energia renovável sejam
considerados como bens comuns. Eles são patrimônio de todo ser vivo. A
humanidade é guardiã e administradora desses bens, não para dilapidar, mas para
partilhar com os outros seres de modo harmonioso e justo. Entretanto, isso que
seria uma conquista de toda humanidade tem encontrado barreiras nas legislações
nacionais. A própria ONU não consegue aprovar uma carta dos direitos da Terra,
da Água, do Ar e de outros recursos dados pelo Criador para uso comum da
humanidade e de todo ser vivo.
Somente uma sociedade organizada a partir do sentido de comunidade
compreende o conceito de bem comum. Onde não há comunidade não pode haver compreensão
de que, além dos bens que são particulares, como uma casa ou um carro de alguém,
existem bens que são comuns a todos. Já em 1854, um cacique dos índios Seattle
escrevia ao presidente dos Estados Unidos : “Como se pode comprar ou vender
o céu, o calor da terra? Essa idéia nos parece estranha. Se não possuímos o
frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los? Cada pedaço desta
terra é sagrado para meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado
de areia das praias, a penumbra na floresta densa, cada clareira e inseto a
zumbir são sagrados na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre
o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho”.
Apesar de que, no mundo inteiro, essa campanha por uma sociedade dos
bens comuns tem crescido e se fortalecido, ainda não tomou no Brasil expressões
visíveis. Este trabalho em defesa da sustentabilidade supõe a compreensão de
que formamos, como diz a “Carta da Terra”, uma “comunidade da vida”. Nessa
educação para uma compreensão mais comunitária da vida e uma partilha mais
justa dos bens comuns, as religiões e tradições espirituais têm uma grande
responsabilidade. As religiões ancestrais indígenas e negras reafirmam a
sacralidade da natureza. A tradição judaico-cristã concorda que todo o universo
é sinal e instrumento do amor divino. A Terra, a Água, o Ar e tudo o que nos
cerca é bem mais do que uma mercadoria. No século XIX, ao concluir sua carta ao
presidente dos Estados Unidos, o cacique Seattle afirmava: “Ensinem a suas
crianças o que ensinamos às nossas: a terra é nossa mãe. Tudo o que acontecer à
terra, acontecerá aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão
cuspindo em si mesmos. A terra não pertence ao homem. O ser humano pertence à
terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma
família. Há uma ligação em tudo. O que ocorrer com a terra recairá sobre os
filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de
seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo”.
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.
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