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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

LEANDRO KONDER OU A UNANIMIDADE INTELIGENTE



Por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio



            O grande escritor e humorista Nelson Rodrigues dizia que toda unanimidade é burra.  Há casos, porém, em que essa tese é solenemente desmentida.  Refiro-me, por exemplo, ao querido Leandro Konder, filósofo brilhante, intelectual mais ainda, poço de doçura e amabilidade, que ensinava teologia aos teólogos, sem deixar jamais sua posição e sua visão da realidade inspiradas no marxismo.

            Leandro era, sem dúvida, uma unanimidade.  Não conheci ninguém que não o amasse, admirasse e dele apreciasse não apenas as virtudes intelectuais, mas também e sobretudo as humanas, que o faziam tão querido. 

Intelectuais brilhantes e sérios, bons professores, excelentes pesquisadores, temos alguns, não muitos, mas enfim alguns. Seres humanos daquela estatura moral e afetiva são muito poucos.

            Conheci Leandro nos idos dos anos 1990, quando trabalhava no Centro de Ação e Investigação Social dos jesuítas.  Organizávamos seminários interdisciplinares extremamente instigantes, que juntavam pessoas das mais variadas áreas do saber para pensar e debater sobre temas candentes.  Leandro era sempre convidado.  E se era eu a organizadora, sempre e sem faltar uma vez.  Comparecia alegre e cheio de disposição e verve.

            Nesses fóruns, presenciamos situações inesperadas.  Por exemplo, no seminário de Mística e Política, ele compartilhou a mesa com o ilustríssimo Pe. Henrique de Lima Vaz.  Todos os presentes ficaram impressionados de ver como o Pe. Vaz falou bem sobre política.  Mas, sobretudo, como e quanto Leandro falou com entusiasmo e conhecimento de mística.

            Assim era esse doce filósofo marxista de olhos azuis, voz e maneiras ternas e amáveis com toda e qualquer pessoa que cruzasse seu caminho.  Inesperada presença geradora de boas surpresas e instigador de ideias até então não pensadas.  Homem de coerência absoluta com aquilo em que acreditava e era o norte de sua vida, assim também como coração aberto em permanência para acolher respeitosa e até carinhosamente qualquer diferença e toda diversidade.

            Quando com ele cruzava no elevador da PUC, indo para o mesmo andar, não havia ninguém, - fosse ascensorista, aluno, colega, funcionário, professor, diretor ou reitor que de sua boca não recebesse palavras de simpatia e gestos afetuosos. E tão afetivamente quanto tratava a todos, por todos era afetuosamente retribuído.  Amado pelos alunos, pelos pares, pelas instâncias de cima, de baixo, vivia cercado de carinho, respeito e alegria.

            Foi um choque para todos acompanhar o declínio de sua saúde.  Sobretudo porque seu humor e amabilidade, suas maneiras feitas de doçura e proximidade continuavam iguais ao que sempre haviam sido.  Seu corpo vergava sob o peso cruel da doença, mas seus lábios sorriam.  Seu passo era mais lento, mas as dezenas de pessoas que o acompanhavam cresciam em número e em demonstrações de carinho.  Sua voz tornava-se mais fraca, quase inaudível, mas os ouvidos dos que bebiam suas palavras, ajudados pelo microfone com que passou a dar aulas, abriram-se mais no desejo de ser ensinados por aquele inigualável pensador e pedagogo.

            Jamais o ouvi queixar-se, expressar impaciência ou mau humor com o que lhe acontecia.  Aquele homem belo, alto e admirado por todos foi se tornando sombra de si mesmo em termos físicos.  Mas uma coisa o Parkinson não conseguiu atingir e minar: sua integridade moral, sua alegria interior, seu amor pelas pessoas e a maneira doce que tinha de tratá-las.

            Aos poucos foi desaparecendo dos corredores da PUC, comparecendo menos à sala de aula, empunhando primeiramente uma bengala, depois sentado em uma cadeira de rodas.  Sempre cercado da presença jovem dos alunos e do afeto dos colegas, sempre com o mesmo sorriso nos lábios e disposto a fazer brincadeiras com todos e cada um.

            Apesar disso, era bom saber que continuava em vida, assim como dói muito saber que já se foi e que não se encontra mais entre nós, na história que ele tanto estudou e pensou.  Antes de morrer, disse à sua esposa que gostaria de uma missa de sétimo dia na PUC-Rio, por ter sido o lugar onde sempre pôde falar com liberdade. Seu desejo foi satisfeito e muitíssimas pessoas encheram a igreja da universidade, rememorando esse grande filósofo, essa doce figura humana, esse marxista cheio de esperança, esse ateu que apreciava a mística e a liturgia.

            Descansa em paz, amigo. Esteja onde você estiver, tenho certeza de que estará dizendo algo amável e afetuoso a alguém.  Se você continua vivo fora da história, assim como eu creio que está, deve estar encantando gente em outras paragens, como sempre o fez por aqui. Procuraremos ser fieis ao que você nos ensinou: o amor à verdade e à liberdade, a paixão por pensar e conhecer, a doçura como melhor método para estabelecer relações consistentes entre pessoas.

A teóloga é autora de Simone Weil Testemunha da paixão    e da compaixão (Edusc) 
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