Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
Fui educada em colégio de freiras, o saudoso Nossa Senhora de Sion, que existe
até hoje, embora com menos religiosas andando por suas galerias e salas de aula
do que no meu tempo. E desde pequena impressionava-me muito a vida de
minhas educadoras, mulheres consagradas, que haviam renunciado a formar uma
família e às alegrias legítimas da vida, para dedicar-se inteiramente a Deus e
seu Reino.
Ao longo de minha formação conheci muitas irmãs, dos mais variados
temperamentos e perfis. Havia as que nos davam medo, bravas e
sérias. Outras, nos faziam rir, partilhando conosco uma alegria meio
infantil, pura e correndo conosco pelos corredores, cúmplices de nossas
travessuras. Outras transpiravam bondade pelos poros e nos comoviam com
sua personalidade inteiramente voltada para o amor e o serviço.
Tempos depois, estudando teologia, eu as tive como colegas, companheiras e
pares. Mas também as conheci ao dar assessorias por lugares longínquos e
desconhecidos do Brasil, ou mesmo em periferias do Rio de Janeiro. Ali eu
as via missionárias, fazendo tripla jornada, com profissão, trabalho pastoral e
noites sem dormir, atendendo os necessitados do bairro ou do campo. Ali
onde ninguém queria estar, estavam as irmãs, dando a totalidade de sua
fecundidade não tornada maternidade biológica, mas transformada em maternidade
real e teologal, ajudando fracos e oprimidos, fazendo brotar vida onde a vida
seria humanamente impossível.
Lembro-me ainda, nos dias de minha juventude, de uma religiosa dominicana
belga, Soeur Sourire (Irmã Sorriso), que gravou um disco de imenso sucesso,
cujo carro chefe era uma canção que falava da vida de São Domingos e cujo
estribilho soava assim: Dominique, nique, nique... A Irmã Sorriso cantou e
gravou discos até o dia em que saiu da congregação e fundou com uma amiga uma
escola para crianças autistas. As dificuldades financeiras e os
obstáculos para relançar-se como cantora conduziram-na à depressão e
posteriormente ao suicídio. Irmã Sorriso levou até o final de sua
tumultuada história a cruz dos dominicanos pendurada em seu pescoço.
Por que todas estas histórias? Porque estou muito impressionada com o
mais recente sucesso do programa The Voice, a freira ursulina italiana Cristina
Scuccia. Dona de uma voz belíssima e potente, e de um domínio de palco e
de corpo incomparáveis, Sor Cristina ganhou o primeiro lugar na edição italiana
do The Voice e bateu todos os recordes no YouTube com mais de 100 milhões de
visitas em seus vídeos. Seu primeiro disco, “Sister Cristina” está
prestes a sair.
Ultimamente, Sor Cristina tem se tornado
fonte de perplexidade nos meios católicos por haver incluído neste último a
canção Like a Virgin, grande sucesso da polêmica cantora pop Madonna. Ela o faz
com novo ritmo, de balada romântica, mas a escolha não deixa de escandalizar os
católicos mais conservadores, que creem que as freiras deveriam estar trancadas
nos conventos e clausuras, dedicando-se a rezar e fazer penitência. Uma
freira cantora dificilmente entra nesses parâmetros.
Sor Cristina não tem medo das críticas. Ao contrário, as enfrenta com
coragem e ao mesmo tempo com doçura e serenidade. Afirma e reafirma que a
escolha da canção de Madonna não tem como objetivo escandalizar a
audiência. Incluiu-a em seu repertorio depois de escutá-la atentamente e
descobrir que versa sobre a capacidade de amar e de renovar as pessoas.
Ao reparar na letra da canção, não podemos não achar que Sor Cristina faz uma
interpretação possível, pois as palavras falam de uma mulher que estava
“vencida, incompleta, havia sido enganada, triste e deprimida” ...até que
encontra alguém, que a faz sentir-se radiante e nova.” É então que canta
o mote da canção: “Como uma virgem tocada por primeiríssima vez. Como uma
virgem quando teu coração bate junto ao meu.” Sor Cristina, na flor
de seus 26 anos, declara que sente uma grande responsabilidade diante do
dom e do talento que Deus lhe deu e que seu único objetivo é prestar seu
testemunho entusiasta por haver encontrado
Cristo. Tudo que deseja é transmitir sua vivência.
Apesar de todos os riscos, não podemos deixar de admirar a audácia desta
religiosa jovem e talentosa, que acaba de renovar seus votos de pobreza,
castidade e obediência, e que pretende doar o que ganhar com a venda de seu
disco a obras de caridade. Se a Igreja tem que estar na rua, sacudindo os
corações, como deseja o Papa Francisco, por que não poderia chegar a Boa Nova
aos jovens de hoje pela bela voz dessa inusitada intérprete?
Quando se trata do Evangelho de Jesus é preciso ousar. Sem medo.
Sor Cristina ousa. Bendita seja! Ela tem quem por ela olhe. A superiora
já lhe disse que o mais importante é não descuidar de sua vida espiritual.
Concordamos e aplaudimos, Sor Cristina. Conte com nossas orações e nossa
vibração pela beleza que você faz o mundo ouvir.
A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão
por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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