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quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

PERDÃO


por MARIA CLARA BINGEMER


A  palavra “perdão” por si mesma carrega em si toda uma concepção antropológica.  Ensina que ser humano é mover-se em uma economia não da troca, não do  comércio, mas do dom.
  Somos feitos  para o dom e não para as relações interessadas e comerciais onde a sociedade  de consumo nos põe.  O perdão significa, então, a ênfase nisso que é  constitutivo de nossa identidade.  Per-dão= persistir no dom, insistir em  dar.  Mesmo  após a ofensa, a ruptura não se dá.  Porque uma  das partes insiste, persiste, per-doa.  

 A revelação, a fé e  a teologia nos dizem que, se somos assim, não existimos sozinhos.  Somos  responsáveis uns pelos outros, estamos conectados uns com outros e depende de  nós todos que a humanidade continue a autocompreender-se como feita para o dom  e não para a acumulação irresponsável de bens  excluindo outros dos  mesmos.

E somos assim   porque Deus é assim.  Se somos criados à sua imagem e semelhança,  não podemos ser de outra maneira.  E se Deus per-doa, persiste no dom  seja o que for que façamos, nós não podemos ser fiéis à nossa vocação de  criaturas suas a não ser perdoando, insistindo e persistindo no dom de nós  mesmos aos  outros.
Reconhecermo-nos  necessitados de perdão equivale então a reconhecer que somos chamados a  perdoar os outros.  A persistir  no dom a fim de que eles possam  encontrar a vida em plenitude para a qual foram criados. 
 
Já no Judaísmo  há uma consciência forte por parte do povo eleito de que é preciso perdoar os  semelhantes para receber o perdão de Deus.  O perdão é vivido e celebrado  com jejum e oração  em uma das festas mais importantes do Judaísmo, o Yom  Kippur. 

  No  Cristianismo, o perdão sem limites encontra-se no coração do ensinamento de  Jesus de Nazaré a seus discípulos.  O Sermão da Montanha, Carta Magna do  Reino de Deus, proposto por Jesus como projeto maior daquele que deseja  segui-lo, traz vários convites ao perdão irrestrito a todos, mesmo aos  inimigos. 

Ao  afirmar que não é permitido insultar seu irmão, pois isso é uma forma de  agressão à sua vida e entra no mandamento que diz “Não matarás”, é toda a  dinâmica do perdão que começa a desenvolver-se. A ira é condenada, pois o amor  respeitoso do irmão, segundo o Evangelho, exige mais do que uma simples  observância da Lei. O autor neotestamentário visa aqui não tanto a uma cólera  interior como aquela que se expressa externamente em injúrias. Não se pode,  portanto, dissociar o sentimento da cólera de certas demonstrações violentas,  notadamente de palavras ofensivas ao próximo.         

O perdão e a  reconciliação não são uma imagem,  mas um dever que se impõe ao cristão mesmo antes de fazer sua oferenda no  templo.  Precede a todo e qualquer gesto e atitude ritual e de louvor a  Deus. Assim também alguém que é agredido (esbofeteado em uma face) não deve  devolver a agressão, mas oferecer a outra face.  Perdoar e mostrar seu  perdão com essa atitude. Amar sempre e apesar de tudo, mesmo aos inimigos e  aos perseguidores. 

O  cristão, portanto, nesta arte de “persistir no dom” deve ir além da justiça  dos escribas e fariseus; deve fazer “a mais” que as categorias pecadoras  mencionadas em comparação pelo evangelista. Deus em pessoa, por seu exemplo  soberano, o chama a um ultrapassar-se constante e sem limite. Deus que faz  nascer seu sol e cair sua chuva sobre maus e bons, justos e injustos.   “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é  perfeito”.

Jesus, o  Filho de Deus, arrasta seus discípulos a limites não suspeitados. Pois não  propõe apenas uma arte de viver neste mundo, mas uma obrigação positiva, um  ministério do amor universal.  Neste sentido, vai muito além do próprio  dever do perdão: apesar de incluí-lo, a exigência de Jesus de não insultar o  outro, não devolver a agressão e amar os inimigos vai mais longe. Rejeitando o  que ainda possa subsistir de condescendência mesmo no perdão, leva a   esquecer-se de si para não mais pensar senão no dom generoso de si, sem  nenhum ressentimento e intenção  escondida.

Trata-se  simplesmente de amar, sem  jogadas estratégicas de manutenção da paz nas  fronteiras da Igreja nem de propaganda para conversão. É, portanto, e sem  dúvidas, um amor mais divino que humano. Mas não deve atemorizar nem  desencorajar ninguém, pois  para isso somos criados, para assemelhar-nos  sempre mais a Jesus Cristo, Filho de Deus e Deus mesmo.  

Maria Clara  Bingemer é professora do Departamento de Teologia da  PUC-Rio é autora de "Deus amor: graça que habita em nós”  (Editora  Paulinas), entre outros livros.

Copyright 2012 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

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