Por MARIA CLARA LUCCHETTI
BINGEMER
Com
a proximidade da festa de Corpus Christi, convém permanecermos em
continuidade com nossa reflexão na crônica da semana passada: a afinidade
simbólica e real da Eucaristia com o corpo da mulher. Nunca é suficiente
o maravilhamento e a ação de graças diante do milagre que faz com que o
corpo da mulher seja o sacramento, o sinal sensível pelo qual toda nova
vida é gerada e alimentada.
Assim é
que encontramos pelo mundo mulheres que vivenciam isso de diversas maneiras.
Sendo ou não mães biológicas; engravidando ou não; amamentando ou não.
A realidade aberta de seus corpos permanece referência
poderosamente evocativa
da presença real e da transubstanciação que a cada momento todo ser humano é chamado a sinalizar com sua própria corporeidade.
da presença real e da transubstanciação que a cada momento todo ser humano é chamado a sinalizar com sua própria corporeidade.
Assim foi com aquelas mulheres argentinas que com um pano branco na cabeça – simbolizando as fraldas que haviam tantas vezes trocado em seus filhos perdidos e desaparecidos – passeavam silenciosas sob a janela do ditador. Eram donas de casa, mães e avós, apenas. Começaram a reunir-se para protestar diante da Casa Rosada, em Buenos Aires. Foi-lhes dito que não podiam ficar paradas ali nem falar. Passaram então a caminhar silenciosamente. Todo dia, cada dia, durante muito tempo.
O
que traziam as chamadas “loucas” da Praça de Maio? Traziam para o
espaço público a orfandade dos filhos e netos perdidos, que sabiam mortos
e dos quais reivindicavam ao menos os corpos para enterrá-los dignamente.
Traziam a ausência dos netos apenas conhecidos e que nunca mais
haviam visto. Queriam criá-los, cuidá-los. Nada mais privado e
familiar do que a reivindicação daquelas mulheres silenciosas que, com
seu gesto eucarístico exposto em praça pública, contribuíram para
desestabilizar uma das mais sangrentas ditaduras do continente.
Assim é também com tantas mulheres que vivem a dor e a frustração tremenda da pobreza e da desnutrição que as leva a não ter nada em seu magro seio para alimentar os filhos. O bispo de Crateús atravessava a cidadezinha pequena e pobre quando viu uma delas. Com seu corpo extensivo, tinha crianças no colo, nas costas, agarradas à saia, ao redor. Mas o que lhe chamou a atenção foi o choro desesperado do bebê que estava em seus braços. Sem dúvida, tinha fome.
O
bispo aproximou-se da mulher esquálida e abatida. E perguntou-lhe
por que não dava de mamar ao bebê. Ela disse não poder fazê-lo. E
ante sua insistência, abriu o seio sobre o qual o bebê se atirou
vorazmente. E sugou sangue. Já não restava nada mais naquele
seio que deveria estar túrgido de leite, mas se apresentava vazio e seco
como a terra do sertão onde a mulher tentava fazer seus filhos
sobreviverem à seca inclemente e à injustiça diuturna e cruel.
Outras
mulheres que não foram mães biológicas sentiram em si mesmas esse
retorcer eucarístico das entranhas na urgência do dom de sua vida para
alimentar outros. É assim que Simone Weil, filósofa e mística
francesa, pouco antes de morrer, escreve “desejar ser devorada por Deus,
transformada em substância de Cristo e dada em alimento a todos os
desventurados cujo corpo e alma sentem falta de alguma espécie de
nutrição.”
É
assim igualmente que Etty Hillesum, a jovem mística judia que morreu aos
29 anos na câmera de gás em Auschwitz, escreveu em seu diário quando
sentiu que as garras do exército hitlerista se fechavam sobre seu frágil
corpo. Enquanto servia e ajudava os que como ela aguardavam o comboio que
os levaria em viagem sem volta para a Polônia, escreveu: “Eu parti meu
corpo como pão e o reparti... E por que não, eles estavam famintos e
sentiam falta disso por tanto tempo...”
Corpo
partido e repartido, carne dada e comida e consumida. Este é o
gesto derradeiro e definitivo de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, em sua
encarnação, vida, morte e ressurreição. Esta é sua maneira de
continuar presente entre nós. Esta é a graça que temos todos nós, seres
humanos – mas de maneira especial as mulheres – de podermos ser presença
real e alimento dado para saciar todas as fomes que impedem a vida de ser
plena.
Maria Clara Lucchetti
Bingemer, teóloga, professora do Centro de Teologia e Ciências Humanas da
PUC-Rio, é autora de “O mistério e o mundo” , recém lançado pela Editora
Rocco.
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