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quarta-feira, 2 de outubro de 2013

MISERICÓRDIA E COMPAIXÂO ESTÃO DE VOLTA



Por J u r a c y   A n d r a d e



     Os cristãos dos tempos mais atuais, sobretudo aqueles filiados à Igreja de Roma, têm uma boa vantagem sobre seus irmãos dos tempos em que a Santa Inquisição trocava os eflúvios da graça, do carisma da fé por brutais expedientes de tortura, desmantelamento físico e psicológico, morte. Mesmo antes da instituição formal de um tribunal tão longe do Evangelho e da fraternidade que Jesus Cristo pregou a seus discípulos, a partir do atrelamento da Igreja de Roma ao Império Romano qualquer um que ousasse defender um ponto de vista teológico contrário aos interesses imperiais, que eram os mesmos do papa (um alto funcionário do Império), era logo acusado de herege, ímpio e reduzido à expressão mais simples, trucidado e, se tivesse sorte, exilado e proscrito. Não creio que nenhum deles pretendesse criar uma Igreja separada. Como, mais tarde, Lutero também não pretendeu. Queriam apenas liberdade para debater. Um complicador dos problemas criados é que o pensamento cristão se desgarrara da simplicidade e singeleza da religião judaica e passara a se vestir exoticamente de conceitos e definições da filosofia grega.

      Nós hoje podemos opinar sobre questões teológicas sem medo de sermos recolhidos às masmorras de Torquemada e cremados em praça pública num auto de fé. Do qual escapou aquela garota que havia comido um noviço, em O nome da rosa (de Umberto Eco), presa como bruxa (quem desencaminha um noviço só pode ser bruxa ...). Isto é, ela escapa no filme que fizeram depois. No livro de Eco, ela vai ao crematório.

     Com o Renascimento, o iluminismo, com a Revolução Francesa, que restaurou a separação entre Igreja e Estado, entre as religiões e a res publica, as coisas começaram a melhorar para quem preza a liberdade de pensar, falar, escrever. Viciada com seu poder imperial reforçado com a derrocada do Império Romano, a Igreja de Roma, aprisionada pelas garras papais, tem demorado demais em aceitar a nova realidade. Apesar de esta ser tão boa para a fé e a vivência do cristianismo, desde que eventuais governantes não tenham pretensões ditatoriais e até de liderança religiosa. Só muito recentemente, após o Concílio Vaticano 2º (o Vaticano 1º, ainda no século 19, foi convocado somente para proclamar como artigo de fé, dogma, a infalibilidade do papa), alguns papas começaram a tolerar um pouco a democracia, se desculpar publicamente pelas seculares sacanagens contra hereges, judeus, indígenas.

      Como estamos, os católicos, acostumados com a centralização da Igreja em torno do papa e sua corte de cardeais, tinha de ser um papa a tentar atualizar o pensamento de uma Igreja que ainda vive, em grande parte, na Idade Média. O papa Francisco dá continuidade, com uma ênfase inusitada, a reformadores como João 23, que convocou o Vaticano 2º, um cara tão simples e alegre que era capaz de bater continência para um oficial com quem servira na 1ª Guerra Mundial e apresentar-se como “capo Roncalli, ai suoi ordini!”; e como João Paulo 1º, que só pastoreou (ele não falava em pontificado, um termo pagão) a Igreja durante um breve mês, e morreu misteriosamente enquanto, dizem, lia um relatório sobre as estripulias do bispo Marcinkus à frente do IOR (Banco do Vaticano). Não houve autópsia. Sabiamente, Francisco não quer nem saber de ficar morando isolado no assim dito Palácio Apostólico (os apóstolos moravam em palácios?), à mercê de venenosas poções medievais ou coisas piores. Prefere um apartamento modesto na Casa de Santa Marta, mais arejada e onde ele pode se cercar de gente de sua confiança. Graças a Deus, está vivo até agora e escapou até dos engarrafamentos do Rio de Janeiro e das arruaças dos black blocks (nada contra legítimas manifestações: para o papa, o jovem tem de protestar contra o que está errado).

     Francisco surpreende a cada entrevista que concede e com suas ações de abertura e abordagens compassivas. Como quando diz que os protagonistas da Igreja são os fiéis e não a hierarquia; quando fala da Igreja como um “lar para todos, não uma pequena capela capaz de abrigar apenas um grupo seleto de pessoas”; “um hospital de campanha” que tem de saber acolher a todos em sua “UTI espiritual”. O papa mostra desejar acabar com a retórica de confronto e isolamento adotada por grande parte da hierarquia católica nas últimas décadas. Em casos, por exemplo, como casamento homossexual, aborto. Não que ele tenha liberado geral, mas acha obsessiva a abordagem comum da hierarquia quanto a temas assim, enquanto se deixa de lado a mensagem central do Evangelho, de amor, misericórdia, esperança, fé.

     Vale a pena referir também respostas de Francisco ao jornalista italiano Eugenio Scalfari, um intelectual de refinada cultura, que lhe fez algumas perguntas através do jornal La Repubblica. Ele é ateu mas se confessa “fascinado pela pregação de Jesus de Nazaré”. Duas perguntas básicas: “Se uma pessoa não tem fé nem a procura, será perdoada pelo Deus cristão?”; “A Igreja, que acredita na verdade revelada, considera erro ou pecado o fato de alguém não crer em nenhuma verdade absoluta, mas só em verdades relativas e subjetivas?”. Demonstrando na prática que não só prega o diálogo com outras religiões e não crentes, mas o pratica, eis o que Francisco respondeu: “Feita a premissa de que a misericórdia de Deus não tem limites, e é o mais importante se nos dirigimos a ele com o coração contrito, a questão para quem não crê em Deus está em obedecer à própria consciência. O pecado, também para quem não tem fé, existe quando agimos contra a consciência”. Eis uma ampla e inédita abertura em direção á cultura moderna. A salvação não seria prerrogativa dos crentes. A resposta à questão da verdade, muito resumida, pois estou consumindo mais do que o espaço habitual, é :” ... eu não falaria, nem mesmo para aqueles que acreditam, de verdade ‘absoluta’ (...) Para a fé cristã, verdade é o amor de Deus por nós em Jesus Cristo. Portanto a verdade é uma relação!”.

     E não esqueçamos que o papa recebeu cordialmente o padre peruano Gustavo Gutiérrez, considerado o pai da Teologia da Libertação e que, um pouco antes, tivera um artigo seu publicado no Osservatore Romano, jornal da Santa Sé. Note-se que o papa argentino já se pronunciou, no passado, contra essa corrente teológica. Ele não tem medo nem vergonha de rever posições. Que Deus lhe dê longa vida e o livre da sina de João Paulo 1º.

Juracy Andrade é jornalista com formação em filosofia e teologia
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