Por J u r a c y A n d r a d e
Os cristãos dos tempos mais atuais,
sobretudo aqueles filiados à Igreja de Roma, têm uma boa vantagem sobre seus
irmãos dos tempos em que a Santa Inquisição trocava os eflúvios da graça, do
carisma da fé por brutais expedientes de tortura, desmantelamento físico e
psicológico, morte. Mesmo antes da instituição formal de um tribunal tão longe
do Evangelho e da fraternidade que Jesus Cristo pregou a seus discípulos, a
partir do atrelamento da Igreja de Roma ao Império Romano qualquer um que
ousasse defender um ponto de vista teológico contrário aos interesses
imperiais, que eram os mesmos do papa (um alto funcionário do Império), era
logo acusado de herege, ímpio e reduzido à expressão mais simples, trucidado e,
se tivesse sorte, exilado e proscrito. Não creio que nenhum deles pretendesse
criar uma Igreja separada. Como, mais tarde, Lutero também não pretendeu. Queriam
apenas liberdade para debater. Um complicador dos problemas criados é que o
pensamento cristão se desgarrara da simplicidade e singeleza da religião judaica
e passara a se vestir exoticamente de conceitos e definições da filosofia
grega.
Nós hoje podemos
opinar sobre questões teológicas sem medo de sermos recolhidos às masmorras de
Torquemada e cremados em praça pública num auto de fé. Do qual escapou aquela
garota que havia comido um noviço, em O
nome da rosa (de Umberto Eco),
presa como bruxa (quem desencaminha um noviço só pode ser bruxa ...). Isto é,
ela escapa no filme que fizeram depois. No livro de Eco, ela vai ao crematório.
Com o Renascimento, o iluminismo, com a
Revolução Francesa, que restaurou a separação entre Igreja e Estado, entre as
religiões e a res publica, as coisas começaram a melhorar para quem preza a
liberdade de pensar, falar, escrever. Viciada com seu poder imperial reforçado
com a derrocada do Império Romano, a Igreja de Roma, aprisionada pelas garras
papais, tem demorado demais em aceitar a nova realidade. Apesar de esta ser tão
boa para a fé e a vivência do cristianismo, desde que eventuais governantes não
tenham pretensões ditatoriais e até de liderança religiosa. Só muito
recentemente, após o Concílio Vaticano 2º (o Vaticano 1º, ainda no século 19,
foi convocado somente para proclamar como artigo de fé, dogma, a infalibilidade
do papa), alguns papas começaram a tolerar um pouco a democracia, se desculpar
publicamente pelas seculares sacanagens contra hereges, judeus, indígenas.
Como estamos, os
católicos, acostumados com a centralização da Igreja em torno do papa e sua
corte de cardeais, tinha de ser um papa a tentar atualizar o pensamento de uma
Igreja que ainda vive, em grande parte, na Idade Média. O papa Francisco dá
continuidade, com uma ênfase inusitada, a reformadores como João 23, que
convocou o Vaticano 2º, um cara tão simples e alegre que era capaz de bater
continência para um oficial com quem servira na 1ª Guerra Mundial e
apresentar-se como “capo Roncalli, ai suoi ordini!”; e como João Paulo 1º, que
só pastoreou (ele não falava em pontificado, um termo pagão) a Igreja durante
um breve mês, e morreu misteriosamente enquanto, dizem, lia um relatório sobre
as estripulias do bispo Marcinkus à frente do IOR (Banco do Vaticano). Não
houve autópsia. Sabiamente, Francisco não quer nem saber de ficar morando
isolado no assim dito Palácio Apostólico (os apóstolos moravam em palácios?), à
mercê de venenosas poções medievais ou coisas piores. Prefere um apartamento
modesto na Casa de Santa Marta, mais arejada e onde ele pode se cercar de gente
de sua confiança. Graças a Deus, está vivo até agora e escapou até dos
engarrafamentos do Rio de Janeiro e das arruaças dos black blocks (nada contra
legítimas manifestações: para o papa, o jovem tem de protestar contra o que
está errado).
Francisco surpreende a cada entrevista que
concede e com suas ações de abertura e abordagens compassivas. Como quando diz
que os protagonistas da Igreja são os fiéis e não a hierarquia; quando fala da
Igreja como um “lar para todos, não uma pequena capela capaz de abrigar apenas
um grupo seleto de pessoas”; “um hospital de campanha” que tem de saber acolher
a todos em sua “UTI espiritual”. O papa mostra desejar acabar com a retórica de
confronto e isolamento adotada por grande parte da hierarquia católica nas
últimas décadas. Em casos, por exemplo, como casamento homossexual, aborto. Não
que ele tenha liberado geral, mas acha obsessiva a abordagem comum da
hierarquia quanto a temas assim, enquanto se deixa de lado a mensagem central
do Evangelho, de amor, misericórdia, esperança, fé.
Vale a pena referir também respostas de
Francisco ao jornalista italiano Eugenio Scalfari, um intelectual de refinada
cultura, que lhe fez algumas perguntas através do jornal La Repubblica. Ele é ateu mas se confessa “fascinado pela pregação
de Jesus de Nazaré”. Duas perguntas básicas: “Se uma pessoa não tem fé nem a
procura, será perdoada pelo Deus cristão?”; “A Igreja, que acredita na verdade
revelada, considera erro ou pecado o fato de alguém não crer em nenhuma verdade
absoluta, mas só em verdades relativas e subjetivas?”. Demonstrando na prática
que não só prega o diálogo com outras religiões e não crentes, mas o pratica,
eis o que Francisco respondeu: “Feita a premissa de que a misericórdia de Deus
não tem limites, e é o mais importante se nos dirigimos a ele com o coração
contrito, a questão para quem não crê em Deus está em obedecer à própria
consciência. O pecado, também para quem não tem fé, existe quando agimos contra
a consciência”. Eis uma ampla e inédita abertura em direção á cultura moderna.
A salvação não seria prerrogativa dos crentes. A resposta à questão da verdade,
muito resumida, pois estou consumindo mais do que o espaço habitual, é :” ...
eu não falaria, nem mesmo para aqueles que acreditam, de verdade ‘absoluta’
(...) Para a fé cristã, verdade é o amor de Deus por nós em Jesus Cristo.
Portanto a verdade é uma relação!”.
E não esqueçamos que o papa recebeu
cordialmente o padre peruano Gustavo Gutiérrez, considerado o pai da Teologia
da Libertação e que, um pouco antes, tivera um artigo seu publicado no Osservatore Romano, jornal da Santa Sé.
Note-se que o papa argentino já se pronunciou, no passado, contra essa corrente
teológica. Ele não tem medo nem vergonha de rever posições. Que Deus lhe dê
longa vida e o livre da sina de João Paulo 1º.
Juracy
Andrade é jornalista com formação em filosofia e teologia
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