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sexta-feira, 25 de outubro de 2013

MARE NOSTRUM

 Por Maria Clara Lucchetti Bingemer


  
          Mare Nostrum era o nome dado pelos romanos ao Mar Mediterrâneo, que unia e comunicava África e Europa. Muitos se utilizaram desta nomenclatura para denominar o mar de tantas conquistas e glórias.  Desde os nacionalistas italianos, que acreditavam que a península em forma de bota era sucessora direta do Império Romano, proprietária de todos os seus territories, até Benito Mussolini, que na sua propaganda fascista reivindicava a posse do Mediterrâneo como Duce.

          Quando a Itália entrou na Segunda Guerra Mundial, o país já era uma das principais potências mediterrâneas e controlava as costas sul e norte da bacia central.  A ocupação da França eliminou a principal ameaça ao país, e a invasão da Albânia, da Grécia e do Egito estendeu o controle das forças do Eixo, formado por Alemanha e Itália até a região oriental do mar. O sonho de Mussolini era, através do Mare Nostrum, promover um Império Italiano que iria do Egito até o oceano Indico, a Somália e o Quênia. Esses sonhos de poder, no entanto, foram derrotados pelas marinhas aliadas e o projeto nazifascista nunca foi realizado, desaparecendo com a derrota final em 1943.

        Ultimamente o Mediterrâneo, Mare Nostrum, tem sido foco novamente do noticiário.  Mas não para contar vitórias e glórias militares.  Macabra e tristemente vem se transformando em autêntico cemitério.  Não há dia em que não se leia ou escute a história terrível de embarcações que naufragam com dezenas ou mesmo centenas de imigrantes que buscam o solo italiano com a esperança de  construir um futuro melhor.

          A ilha de Lampedusa, no arquipélago das Ilhas Pelágias, no Mediterrâneo, vem sendo vista e concebida como paraíso turístico, bem como local de desembarque de imigrantes clandestinos vindos do norte da África, etíopes e de outros países.

          O paraíso turístico transformou-se em cemitério, o poderoso Mare Nostrum em túmulo de várias centenas de pessoas anônimas, que sepultam seu sonho europeu nas águas profundas e azuis, sem esperança de volta. Muitos atravessam em condições precárias e perigosas. E acabam encontrando a morte.  Preferem esse risco à vida de miséria e indigência que levavam.

          O Papa Francisco, fiel à sua missão de ser embaixador da misericórdia de Deus, foi à ilha denunciar a globalização da indiferença e convocar a um despertar das consciências. Foi sua primeira viagem apostólica e é significativo que tenha escolhido Lampedusa para a primeira viagem apostólica de seu pontificado.

          Em suas palavras, foi ali para “chorar os mortos que ninguém chora”, aqueles que se evadem de suas terras, no Oriente Médio e no norte da África. Acompanhado apenas de seus secretários particulares, percorreu de barco parte da costa até a Porta da Europa, monumento erguido em memória de todas as vítimas de naufrágios.

          Mas não só de lágrimas e de luto foi feita a visita do Papa.  Também de denúncia profética e convocação enérgica. Ressaltando o fato de Lampedusa ser exemplo para o mundo por ter a coragem de acolher aqueles que chegam em busca de uma vida melhor, criticou os traficantes e mercadores de vida, que exploram a pobreza alheia, cobrando por uma travessia que muitas vezes desemboca na morte.

     As lágrimas do Papa desejavam provocar as nossas, tirar-nos da indiferença em que estamos mergulhados diante dos que fogem da escravidão, da fome e encontram a morte no fundo do mar.

      A orgulhosa e aristocrática Europa treme, amedrontada.  Já mal consegue administrar sua crise interna. Deverá também acolher estrangeiros que vêm colocar em risco o conforto e o “status” de vida de seus habitantes?  A xenofobia cresce e os movimentos de exclusão se consolidam. Desde janeiro, 4 mil imigrantes chegaram à ilha, número três vezes maior do que os que ali aportaram em 2012.

       Não pode ser chamado de nosso (nostrum) um mar que sepulta vidas humanas em vez de transportá-las aos lugares desejados como espaços de liberdade.  Não pode ser orgulho de uma ou das várias nações que suas águas banham esse mar onde tantos futuros foram afogados. 

     Para que seja nosso, o Mediterrâneo tem que ser de todos, e estar ao serviço do trânsito, do ir e vir das pessoas que buscam uma vida melhor e menos sofrida. Essa é a verdadeira vitória: a da vida.  Não a do egoísmo que deseja acumular bem estar e riqueza com a exclusão das vítimas do progresso e dos estrangeiros das benesses socioeconômicas.  

    Mare Nostrum, devolve seus mortos, para que tenham sepultura digna e  possam interpelar aqueles cuja consciência ainda não está totalmente adormecida.
          
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio/  A   teóloga é autora de “Crônicas de cá e de lá” (editora Subiaco), que  pode ser  encomendado diretamente pelo e-mail –  agape@puc-rio.br

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