Por Maria
Clara Lucchetti Bingemer
Mare
Nostrum era o nome dado pelos romanos ao Mar Mediterrâneo, que unia e
comunicava África e Europa. Muitos se utilizaram desta nomenclatura para
denominar o mar de tantas conquistas e glórias. Desde os nacionalistas
italianos, que acreditavam que a península em forma de bota era sucessora
direta do Império Romano, proprietária de todos os seus territories, até Benito
Mussolini, que na sua propaganda fascista reivindicava a posse do Mediterrâneo
como Duce.
Quando
a Itália entrou na Segunda Guerra Mundial, o país já era uma das principais
potências mediterrâneas e controlava as costas sul e norte da bacia
central. A ocupação da França eliminou a principal ameaça ao país, e a
invasão da Albânia, da Grécia e do Egito estendeu o controle das forças do
Eixo, formado por Alemanha e Itália até a região oriental do mar. O sonho de
Mussolini era, através do Mare Nostrum, promover um Império Italiano que iria
do Egito até o oceano Indico, a Somália e o Quênia. Esses sonhos de poder,
no entanto, foram derrotados pelas marinhas aliadas e o projeto nazifascista
nunca foi realizado, desaparecendo com a derrota final em 1943.
Ultimamente o
Mediterrâneo, Mare Nostrum, tem sido foco novamente do noticiário. Mas
não para contar vitórias e glórias militares. Macabra e tristemente vem
se transformando em autêntico cemitério. Não há dia em que não se leia ou
escute a história terrível de embarcações que naufragam com dezenas ou mesmo
centenas de imigrantes que buscam o solo italiano com a esperança de
construir um futuro melhor.
A ilha
de Lampedusa, no arquipélago das Ilhas Pelágias, no Mediterrâneo, vem sendo
vista e concebida como paraíso turístico, bem como local de desembarque de
imigrantes clandestinos vindos do norte da África, etíopes e de outros países.
O
paraíso turístico transformou-se em cemitério, o poderoso Mare Nostrum em
túmulo de várias centenas de pessoas anônimas, que sepultam seu sonho europeu
nas águas profundas e azuis, sem esperança de volta. Muitos atravessam em
condições precárias e perigosas. E acabam encontrando a morte. Preferem
esse risco à vida de miséria e indigência que levavam.
O Papa
Francisco, fiel à sua missão de ser embaixador da misericórdia de Deus, foi à
ilha denunciar a globalização da indiferença e convocar a um despertar das
consciências. Foi sua primeira viagem apostólica e é significativo que tenha
escolhido Lampedusa para a primeira viagem apostólica de seu pontificado.
Em
suas palavras, foi ali para “chorar os mortos que ninguém chora”, aqueles que
se evadem de suas terras, no Oriente Médio e no norte da África. Acompanhado
apenas de seus secretários particulares, percorreu de barco parte da costa até
a Porta da Europa, monumento erguido em memória de todas as vítimas de
naufrágios.
Mas
não só de lágrimas e de luto foi feita a visita do Papa. Também de
denúncia profética e convocação enérgica. Ressaltando o fato de Lampedusa ser
exemplo para o mundo por ter a coragem de acolher aqueles que chegam em busca
de uma vida melhor, criticou os traficantes e mercadores de vida, que exploram
a pobreza alheia, cobrando por uma travessia que muitas vezes desemboca na
morte.
As lágrimas do Papa desejavam
provocar as nossas, tirar-nos da indiferença em que estamos mergulhados diante
dos que fogem da escravidão, da fome e encontram a morte no fundo do mar.
A orgulhosa e aristocrática
Europa treme, amedrontada. Já mal consegue administrar sua crise interna.
Deverá também acolher estrangeiros que vêm colocar em risco o conforto e o
“status” de vida de seus habitantes? A xenofobia cresce e os movimentos
de exclusão se consolidam. Desde janeiro, 4 mil imigrantes chegaram à ilha,
número três vezes maior do que os que ali aportaram em 2012.
Não pode ser chamado de
nosso (nostrum) um mar que sepulta vidas humanas em vez de transportá-las aos
lugares desejados como espaços de liberdade. Não pode ser orgulho de uma
ou das várias nações que suas águas banham esse mar onde tantos futuros foram
afogados.
Para que seja nosso, o Mediterrâneo
tem que ser de todos, e estar ao serviço do trânsito, do ir e vir das pessoas
que buscam uma vida melhor e menos sofrida. Essa é a verdadeira vitória: a da
vida. Não a do egoísmo que deseja acumular bem estar e riqueza com a
exclusão das vítimas do progresso e dos estrangeiros das benesses
socioeconômicas.
Mare Nostrum, devolve seus mortos, para
que tenham sepultura digna e possam interpelar aqueles cuja consciência
ainda não está totalmente adormecida.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio/ A teóloga é autora de “Crônicas
de cá e de lá” (editora Subiaco), que pode ser encomendado
diretamente pelo e-mail – agape@puc-rio.br
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