por Maria Clara Lucchetti Bingemer
O desejo é uma tensão em direção a um fim considerado fonte de satisfação. Trata-se, portanto, de uma aspiração, de uma inclinação em direção àquilo que não se possui. É uma inclinação algumas vezes consciente, outras inconsciente.
O desejo se distingue da
necessidade fisiológica ou psicológica que o acompanha por estar plantado no
centro da afetividade humana. Ele nos diz que somos incompletos, carentes,
limitados e finitos. Um ser que de nada carecesse não desejaria nada.
Seria um ser perfeito, um deus. Por isso a filosofia grega antiga
tomava o desejo como característica de seres finitos e imperfeitos, que não são
o Bem, mas podem desejá-lo; que não possuem a Beleza, mas podem desejá-la e
procurá-la. Como diz Santo Agostinho: “O que é o desejo, senão o
apetite de possuir o que ainda falta?“
Mas não se trata de possuir
coisas, e sim de deixar-se atingir e convocar pela interpelação do outro.
Esse apelo fora dos padrões da normalidade medíocre chega ao fundo do ego
fechado em sua autocomplacência e abre-o ao reconhecimento da diferença.
Segundo o filósofo judeu Emmanuel Levinas, o desejo fere e fragmenta a interioridade humana, descobrindo-lhe o vazio de sua suficiência. E dali jorra no Eu uma fome que nada poderá satisfazer e nutrir, uma fome insaciável. Isso é o “desejo”.
É
algo que transcende a satisfação e a insatisfação. Significa uma
distância maior, uma não posse mais precisa que a posse, uma fome que se nutre
não de pão, mas sim da fome mesma. Como diz Adélia Prado: “Não quero faca nem
queijo. Quero a fome”.
O
desejo metafísico, que vai além da physis (ou seja, do nível sensorial,
puramente natural), situa-se nas antípodas da posse e da satisfação total.
Ao invés, está sempre conectado à decepção da satisfação ou ainda à exasperação
da não satisfação. É um desejo que quanto mais deseja, mais vê crescer em si
sua capacidade de desejar. Seu dinamismo fundamental não é a necessidade que
deve ser satisfeita, mas a abertura ao outro. Sob a força desse desejo, o eu
contém então mais do que poderia normalmente conter, rompe o cárcere de sua
subjetividade ego centrada e da palidez de uma identidade voltada para a
repetição infindável e monótona do já conhecido.
O
desejo que impulsiona para o outro não encontra sua fonte em necessidades
insatisfeitas que o mesmo sujeito se encontra ávido por preencher, mas em um
“mais”, em um “excesso” que só a infinitude pode atender. Anterior a todo
conhecimento e a toda questão, o desejo é cavado no mais profundo do ser humano
pela alteridade do outro humano e do totalmente Outro misterioso, que nós
chamamos Deus. Porque somente o desejo, com sua sede nunca saciada, está
apto a abrir-se ao Infinito que nada pode conter.
O
desejo sussurra ao ouvido da pessoa humana, incessantemente, qual é sua
condição: ser criado, humano, finito e limitado. Mas capaz de desejar o
Ilimitado, o Infinito. O espaço aberto na subjetividade humana pelo desejo da
transcendência e a abertura para a interioridade, para o Mistério, pode ser a
força capaz de romper a materialidade do consumismo, a alienação que se nega a
ver os conflitos que dividem o tecido social. Neste sentido, o desejo é
condição de possibilidade para uma atitude crítica diante da sociedade de
consumo e da exterioridade de sensações.
O consentimento ao desejo
contradiz a lógica do mercado, altera as relações mercantilistas do consumo e
permite sonhar em construir outro tipo de sociedade e cultura. A restauração da
capacidade desejante do indivíduo e da sociedade vai na direção contrária à
corrente da excitação constante das sensações; contra o predomínio de uma
emocionalidade “líquida”, sem discernimento; contra a redução da pessoa humana
a um mero consumidor passivo de produtos que lhe são impostos por tal tipo de
sociedade.
Desejar
é tomar posse dos próprios sentidos para aquilo que realmente foram feitos:
ver, escutar, sentir, saborear, tocar. Escutar a beleza da música composta sob
inspiração do artista. Mas também escutar os clamores que brotam da
própria interioridade, assim como os clamores do próximo por justiça e equidade.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.
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