Por Leonardo Boff
A Igreja Católica, na liturgia da Sexta-feira Santa, que
celebra a crucificação de Jesus, coloca em sua boca estas palavras pungentes:
”Que te fiz, meu povo eleito? Dize em que te contristei! Que
mais podia ter feito, em que foi que te faltei? Eu te fiz sair do Egito e com
maná de alimentei. Preparei-te bela terrra, e tu, a cruz para o teu rei”.
A paixão de Cristo continua na paixão do povo
afrodescendente, na discriminação como foi sofrida pela atriz Taís Araújo.
Falta a segunda abolição, da miséria, da fome do desemprego e da discriminação.
Em solidariedade à atriz Taís Araújo publico este pequeno
poema-reflexão, imitando a liturgia da sexta-feira santa, como solidariedade
contra a discriminação de que foi vítima. Penso que ela foi discriminada não só
por sua negritude, mas por ser uma excelente artista e de singular beleza. Há
nisso tudo também inveja e sentimentos menores em muitas pessoas. Aqui vai meu
texto no qual se faz ouvir o lamento triste dos afrodescendentes, como forma de
solidariedade à Taís Araújo.
*******************************
“Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu
e em que te contristei? Responde-me!
Eu te inspirei a música carregada de banzo e o ritmo
contagiante. Eu te ensinei como usar o bumbo, a cuíca e o atabaque. Fui eu que
te dei o rock e a ginga do samba. E tu tomaste do que era meu, fizeste nome e
renome, acumulaste dinheiro com tuas composições e nada me devolveste.
Eu desci os morros, te mostrei um mundo de sonhos, de uma
fraternidade sem barreiras. Eu criei mil fantasias multicores e te preparei a
maior festa do mundo: dancei o carnaval para ti. E tu te alegraste e me
aplaudiste de pé. Mas logo, logo, me esqueceste, reenviando-me ao morro, à
favela, à realidade nua e crua do desemprego, da fome, da discriminação e da
opressão.
Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu
e em que te contristei? Responde-me!
Eu te dei em herança o prato do dia-a-dia, o feijão e o
arroz. Dos restos que recebia, fiz a feijoada, o vatapá, o efó e o acarajé: a
cozinha típica da Bahia. E tu me deixas passar fome. E permites que minhas
crianças morram famintas ou que seus cérebros sejam irremediavelmente afetados,
infantilizando-as para sempre.
Eu fui arrancado violentamente de minha pátria africana.
Conheci o navio-fantasma dos negreiros. Fui feito coisa, “peça”, escravo e
escrava. Fui a mãe-preta para teus filhos e filhas. Cultivei os campos, plantei
o fumo para o cigarro e a cana para o açúcar. Fiz todos os trabalhos. Ajudei a
construir quase tudo o que existe neste país, monumentos, palácios e igrejas
coloniais. E tu me chamas de preguiçoso e me prendes por vadiagem. Por causa da
cor da minha pele me discriminas e me tratas ainda como se continuasse escravo.
Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu
e em que te contristei? Responde-me!
Eu soube resistir, consegui fugir e fundar quilombos:
sociedades fraternais, sem escravos, de gente pobre mas livre, negros, negras,
mestiços e brancos. Eu transmiti, apesar do açoite em minhas costas, a
cordialidade e a doçura à alma brasileira. E tu me caçaste como bicho,
arrasaste meus quilombos e ainda hoje impedes que a abolição da miséria que escraviza
e a discriminação continuem como realidades cotidianas e efetivas.
Eu te mostrei o que significa ser templo vivo de Deus. E, por
isso, como sentir Deus no corpo cheio de axé e celebrá-lo no ritmo, na dança e
nas comidas sagradas. E tu reprimiste minhas religiões chamando-as de ritos
afro-brasileiros ou de simples folclore. Não raro, fizeste da macumba caso de
polícia.
Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu
e em que te contristei? Responde-me!
Quando com muito esforço e sacrifício consegui ascender um
pouco na vida, ganhando um salário suado, comprando minha casinha, educando
meus filhos e filhas, cantando o meu samba, torcendo pelo meu time de estimação
e podendo tomar no fim de semana uma cervejinha com os amigos, tu dizes que sou
um negro de alma branca, diminuindo assim o valor de nossa alma de negros,
dignos e trabalhadores. E nos concursos em igual condição quase sempre sou
preterido em favor de um branco. Porque sou negro ou negra.
E quando se pensaram políticas públicas para reparar a
infâmia histórica, permitindo-me o que sempre me negaste: estudar e me formar
nas universidades e nas escolas técnicas e assim melhorar minha vida e de minha
família, a maioria dos teus grita: é contra a constituição, é uma
discriminação, é uma injustiça social. Mas finalmente a Justiça agora nos fez
justiça e nos abriu as portas das universidades e das escolas técnicas.
Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: Que te fiz eu
e em que te contristei? Responde-me!”
“Responde-me, por favor”.
E nós brancos, os que dispomos do ter, do saber e do poder,
geralmente calamos, envergonhados e cabisbaixos. É hora de escutar o lamento
destes nossos irmãos e irmãs afro-descendentes, somar forças com eles e
construir juntos uma sociedade inclusiva, pluralista, mestiça, fraterna,
cordial onde nunca mais haverá, como ainda continua havendo no campo, pessoas
que se atrevem a escravizar outras pessoas.
Oxalá possamos gritar: “escravidão nunca mais”. E enxugando
as lágrimas podemos responder às discriminações com o AMOR como o fez Taís
Araújo. E vamos um dia, que só Deus saberá, poderemos dizer todos juntos, como
no Apocalipse, sem vingança e rancor:”Tudo isso passou”.
Leonardo Boff é teólogo, filósofo, colunista do JB on line e
escritor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário