Por Marcelo Barros
Quem passa pelo sertão
nordestino se depara com paisagens de seca que parecem cenários de filmes de
guerra depois da destruição.
No entanto, muitas pessoas que vivem no semiárido conseguem
não só sobreviver, mas realizar projetos maravilhosos e dar testemunho de
alegria e paz. Não é fácil compreender o segredo dessa energia de vida que
ilumina o olhar da pessoa humana e a torna vencedora, mesmo nas mais duras
condições de vida. É uma mística, segredo que dá força a essas pessoas e
comunidades. Mística tem a mesma raiz de mistério. Diz respeito à intimidade
mais profunda que motiva e impulsiona a vida interior de alguém e de um grupo.
Desde muito antigamente,
as tradições orientais do Hinduísmo e do Budismo presenteiam a humanidade com
místicas que ensinam a lidar com o sofrimento, a pobreza e a luta da vida. Hoje
existem terapias baseadas em métodos de respiração oriental. Outras tradições
espirituais como o Xamanismo também têm propostas místicas que ajudam a
resistência. Alguns grupos contemporâneos desenvolvem um tipo de
espiritualidade baseada na autoajuda, em cuidados consigo mesmo e com a saúde.
São caminhos legítimos, mas só podem se chamar verdadeiramente espirituais
quando vão além de um cuidado egoísta de cada um consigo mesmo para pôr as
pessoas em comunhão umas com os outras e com o cosmos.
Todo ser humano é guiado por
impulsos profundos que condicionam o seu modo de ser e de viver. Há pessoas que
se movem e vivem pelo impulso de possuir. Querem sempre ter coisas e, mesmo
quando se relacionam com os outros, é para possuir. Esse impulso de apropriação
fortalece o instinto individualista.
Ao contrário, há pessoas e grupos que
desenvolvem a cultura de valorizar o que é comum a todos. Na África, os Zulus
ensinam o princípio do Ubuntu: “Eu existo porque nós existimos”. Na América
Latina, a concepção do bem viver e bem conviver
tem sido espalhada por várias culturas indígenas. Segundo esse modo de
ver a vida, a felicidade está em dar-se e em construir relações verdadeiramente
baseadas no amor solidário e nos bens comuns. Assim, se enfrenta melhor o medo
do desconhecido, a fragilidade da idade e se cria um convívio de justiça e não
violência. Não se trata só de educação social, mas de uma verdadeira mística
plantada no mais íntimo de cada pessoa.
Em um mundo agitado e uma sociedade
agressivamente competitiva, a contribuição mais importante de uma mística, seja
cristã, seja de outra religião, é nos tornar capazes de sermos pessoas de
profunda escuta do outro, capazes de comunhão universal e profundamente
solidários com o destino da humanidade. Para aprofundar a comunhão com o outro,
é importante saber conviver de modo mais profundo consigo/a mesmo/a.
Até a
intimidade com Deus depende do diálogo interior de cada pessoa consigo mesma. Na
Bíblia, um salmo ora: “Unifica o meu coração, para eu viver na intimidade do
teu amor” (Sl 86, 11). Os místicos antigos se chamavam monges (o termo grego
monos quer dizer uno) porque viviam para alcançar a unidade interior. São Gregório
escreveu sobre São Bento que ele “habitava consigo mesmo”.
Essa busca da
unidade interior é graça divina, mas pede um cultivo. Não acontece
espontaneamente e sem método. Alguns elementos desse caminho são universais e
ecumênicos. Outros são próprios de uma ou outra tradição. O Cristianismo antigo
herdou das religiões orientais a técnica da meditação. Refez costumes como a
peregrinação e a importância da solidariedade e da partilha. Essas duas
dimensões (a interior e a social) se completam uma a outra.
O Budismo faz da
esmola uma exigência prévia para alguém ser monge. O Islã também põe a
misericórdia com o outro como mandamento fundamental. O Cristianismo insiste
que, se a gente não se relaciona com o irmão a quem vê, não pode se relacionar
com Deus a quem não vê (Cf. 1 Jo 4, 20). Dietrich Bonhoeffer, teólogo, vítima
do nazismo, dizia: “O Cristo está em mim para você e está em você para mim. Ele
está em mim, mas eu só o encontro em você. Está em você, mas você só pode
encontrá-lo em mim”. Na primeira vez em que veio a São Paulo, o Dalai Lama
afirmou: “Toda pessoa tem dentro de si uma semente de compaixão. É preciso
desenvolvê-la”.
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.
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