Por Eduardo Hoornaert.
O cristianismo nasceu
universal, sob os impulsos da postura universal de Jesus de Nazaré que não
tomava em consideração se alguém era judeu ou não judeu, pecador ou ‘justo’,
homem ou mulher, mas tratava a todos e todas de modo igual, independente de
gênero, nacionalidade, situação social, cultural ou econômica. Com isso, ele
colocou as bases para o universalismo cristão, marca registrada da novidade
trazida pelo profeta galileu.
Mas, na medida em que o
cristianismo cresceu, perdeu-se o senso do universalismo. A igreja começou a
formar um ‘rebanho de fieis’, lutar contra ‘infiéis’ e ‘hereges’ e formatar
paróquias para proteger os fiéis contra influências maléficas de fora.
Perdeu-se o senso universalista. Quanto mais a igreja cresceu, tanto mais ela
agiu como se o mundo inteiro fosse seu território e que ela pudesse fazer valer
suas leis para a humanidade toda. Correndo atrás de poder e prestígio, ela
perdeu um dos mais preciosos tesouros do legado de Jesus de Nazaré: a
capacidade de se dirigir com amor e desinteresse a todas as pessoas que habitam
este planeta. Ela se envolveu em guerras (como as Cruzadas contra o Islã, uma
religião irmã) e perseguições, chegando ao ponto de legitimar a tortura (na
Inquisição) e a escravidão (ao longo das colonizações europeias). Só no ano
1964 ela pronunciou uma condenação formal da escravidão (numa referência de
passagem que passou despercebida por muitos), por ocasião do Concílio Vaticano
II. Isso mostra como a falta de sensibilidade universalista é algo bem recente
(apenas 50 anos nos separam do Concílio Vaticano II). Não se pode pensar que
ela desaparecerá tão cedo.
Nesse contexto é
importante que surjam pessoas públicas que aproveitam de sua posição
privilegiada para reavivar entre nós o senso perdido do universalismo. No
século XX tivemos figuras como Mahatma Gandhi, que aproveitou da grande
visibilidade que a imprensa mundial lhe deu para difundir amplamente a ideia do
universalismo (foi morto por um fanático que não entendeu nada). Tivemos Nelson
Mandela, presidente da República da África do Sul, tivemos Martin Luther King,
pastor batista, tivemos Helder Câmara, arcebispo católico. Essas pessoas
aproveitaram da visibilidade que os meios de comunicação lhes forneciam para
difundir o evangelho do universalismo, cada um num determinado setor.
Hoje, entram novos atores
a divulgar esse evangelho. Temos o líder grego Alexis Tsipras da Syriza, um
político situado num determinado contexto, que divulga uma mensagem que vale
para o mundo inteiro: a política não deve servir aos bancos, mas aos cidadãos.
Mas temos igualmente líderes que aparecem quase diariamente nos grandes meios
de comunicação, mas que não se dirigem à humanidade como um todo, como Barack
Obama, que só fala em benefício dos Estados Unidos, e Ángela Merckel, que só
age em benefício da Alemanha.
É com alegria que se
percebe que o papa Francisco vem se juntar aos líderes que enxergam a realidade
universal em vez de olhar somente para seu ‘rebanho’. A publicação de sua Carta
Encíclica (carta circular) ‘Laudato si’ é um sinal inconfundível dessa nova
postura. Pelo que sei, nenhum papa, ao longo dos séculos, se dirigiu a todas as
pessoas que vivem neste planeta sem nenhum tipo de discriminação. O título da
Carta já diz tudo: ‘Carta encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum’.
O planeta terra é nossa casa comum, a casa de todos e de todas. Ao longo da
Carta, o papa escreve ´nós´, ou seja, envolve seus leitores e suas leitoras
numa comunhão de leitura e observação. De vez em quando, ele escreve ‘eu’ (não
´nós’, segundo tradicional protocolo papal), quando enuncia uma opinião
pessoal. Isso faz com que estejamos dialogando com Francisco quando lemos sua
Carta. Significativamente, o papa assina o documento com seu nome, numa só
palavra: ´Franciscus´. Francisco deseja conversar conosco de igual
para igual, pois faz ponderações sobre temas que nos atingem a todos e todas,
desde o papa até o mais ferrenho ateu: o clima, a água, a biodiversidade, a
sujeira dos rios e dos córregos, a qualidade de vida, a degradação social, a
desigualdade planetária, etc. Repito: papa Francisco não escreve como líder da
igreja católica, embora seja verdade que ele está na posição privilegiada de
poder divulgar suas ideias num raio muito amplo. Ele se aproveita disso, como
toda razão. Afinal, o papado não é um serviço prestado a toda a humanidade?
Todos e todas necessitamos
de ar puro (não o ar que se respira em São Paulo), água pura e suficiente,
eletricidade produzida por água, pão e feijão produzidos por plantas sadias
(não como muitos produtos nos Supermercados), terra para plantar (não para
enriquecer os que já têm dinheiro demais), respeito (inclusive para
homossexuais etc.), liberdade (não a falsa liberdade de imprensa defendida pela
Globo), dignidade (dos indígenas, negros, mulheres domésticas). É uma coisa só,
um bloco só. Um dos pontos mais inovadores da Carta papal consiste no fato que
ele alinha problemas ecológicos e problemas sociais e culturais. Afinal, o
universalismo é uma atitude global.
Com o papa Francisco
voltamos a Francisco de Assis, universalista ao ponto de pregar para peixes e
pássaros, e, mais adiante, a Jesus de Nazaré, que convida cobradores de
impostos à sua casa para comer juntos, como se descreve no Evangelho de Marcos
(Mc 2, 15-20), atende a uma mulher siro-fenícia que não pertence ao ‘povo
eleito’ (Mc 7, 24-30) e permite que uma mulher derrame óleo precioso sobre sua
cabeça (Mc 14, 60 sqq). Um universalismo que passa por cima de todas as
barreiras.
Com a Carta encíclica do
papa Francisco se abre uma perspectiva que para muitos cristãos parece nova,
mas que na realidade pertence ao DNA do movimento de Jesus.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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