Por Maria Clara Bingemer
Há tempos circula nas redes sociais a frase: “Não existe mulher que gosta de
apanhar; o que existe é mulher humilhada demais para denunciar, machucada
demais para reagir, com medo demais para acusar, pobre demais para ir embora.”
Gosto da frase apesar de sua alguma banalidade. Gosto porque me parece
que, de forma primária, diz a verdade sem sombras nem ocultamentos.
Cresci na geração que glorificava frases machistas do tipo “Lugar de mulher é
na cozinha” ou “Quando você bate em uma mulher você pode não saber por que está
batendo, mas ela sabe por que está apanhando”. Trata-se da geração que
brindava por “saúde e filhos machos” e considerava a mulher um objeto de
propriedade do pai, do irmão mais velho, depois do marido, do filho etc., sem
vida própria, vontade própria ou qualquer laivo de independência.
Por isso, parece-me de extrema oportunidade o tema da redação da prova do Enem
sobre “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”.
Questão extremamente atual, instigante e que obriga os estudantes que se
dispõem a fazer o percurso da universidade a tomar consciência de que a
violência contra a mulher no Brasil só faz crescer. Apesar de alguns avanços,
como as delegacias da mulher, a Lei Maria da Penha e outros, é fato que
continuam acontecendo espancamentos, violações, estupros e toda classe de
violência sexual que diariamente acometem as mulheres em todo o nosso
território nacional. Pesquisas comprovam que a maior parte das agressões
ocorre dentro do lar, e são cometidas por esposos, companheiros ou namorados,
ou seja, pessoas da confiança das agredidas.
É sintomático da existência de um ainda vigoroso machismo em nossa população o
fato de o tema ter causado tanta polêmica, invadido as redes sociais com
críticas irritadas e agressivas. Muitos protestam contra o que dizem ser
uma forma de tornar a mulher uma “vítima privilegiada” da violência.
Parecem não dar-se conta de que se homens e mulheres e até mesmo animais são
suscetíveis de sofrer violência tornando-se, portanto, igualmente dignos da
proteção da Lei, as mulheres têm contra si vários elementos que tornam a
violência que sofrem mais frequente e por isso mesmo mais lamentável.
Padecem, além e acrescentado à agressão, do fato de possuírem menor força
física, ou dependerem financeiramente do agressor. Os agressores contam
também com a cumplicidade e o pacto informal de silêncio das instituições e da
sociedade quando o assunto é violência doméstica ou feminicídio. Ditos como “em
briga de marido e mulher ninguém põe a colher” confirmam agressor e vítima no
papel que desempenham no triste cenário da violência sexual que continua
acontecendo em nosso país.
Em todo caso, a prova de redação incomodou. O tom de alguns comentários
ouvidos e lidos após a prova era de surpresa, como se uma realidade presente em
muitos lares, bares e locais de trabalho nunca tivesse existido, fosse uma
pequena desavença doméstica sobre a qual não seria educado falar. Ou ainda,
apenas uma bandeira de movimentos de gênero ou políticos.
Ora, independentemente das provas do Enem, a violência contra
qualquer ser humano, animal ou natureza não é questão de ideologia.
Trata-se de uma violência contra a humanidade, aos direitos humanos, à civilização,
aos direitos fundamentais. Está previsto no edital do próprio exame que “[...]
será atribuída nota 0 (zero) à redação: [...] que desrespeite os direitos
humanos...” A violência contra a mulher é a violação de um direito humano e,
portanto, intrinsecamente perversa e reprovável. Mais: trata-se de
violência cometida contra a mulher, independentemente de sua ideologia, posição
política, configuração ideológica. Atirar sobre o tema a perspectiva do
feminismo como ideologia reducionista não corresponde à realidade e não é
expressão da verdade.
Na realidade, a questão motivadora da redação na prova é
detonadora de toda a celeuma. Trata-se da citação da conhecida filósofa e
escritora francesa Simone de Beauvoir: "Ninguém nasce mulher: torna-se
mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a
fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que
elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de
feminine."
Simone de Beauvoir é uma das pensadoras mais conhecidas da
contemporaneidade. E não apenas nem principalmente por ser a companheira
do famoso e ilustre filósofo Jean Paul Sartre. Com luz própria e uma
personalidade fulgurante, Simone abriu caminho por entre a machista sociedade
francesa e europeia com seu livro “O segundo sexo”, chamou sobre si os
holofotes do questionamento que faria surgir um dos movimentos mais importantes
do século XX, o movimento feminista.
Muitas mulheres certamente não se alinham inteiramente com o ideário de Simone
de Beauvoir. Eu sou uma delas. Mas não posso deixar de reconhecer
seu valor intelectual e o largo e fascinante caminho que abriu para todas as
mulheres do mundo, espécie ainda medrosa, envergonhada e intimidada pela discriminação
de que sempre foi objeto. O fato de seus textos serem acessíveis aos
jovens de ambos os sexos que hoje se preparam para entrar na universidade é
extremamente positivo.
São jovens que, procurando redigir um texto claro
e inteligível sobre o tema, são convidados a não confirmar na sociedade em que
vivem e à qual amanhã presidirão chavões lamentáveis como o título deste
artigo.
Mulher não gosta de apanhar. Como todo ser vivo mulher gosta de carinho,
de amor e de respeito. A diferença é que cada vez mais ela está
aprendendo a se defender e a demonstrar que se recusa a enquadrar-se nos
estereótipos que lhe foram destinados. Trata-se de uma das maiores
revoluções – senão a maior – que está em curso em nossos tempos. Quem sabe
uma sociedade onde a mulher tenha um papel mais relevante poderá ser menos
violenta, menos injusta, menos cruel? A história dirá. Enquanto
isso, leiamos Beauvoir. Mas não só ela. Também todos e todas que na
história mais recente ou mesmo mais antiga refletiram sobre a igualdade de
direitos entre mulher e homem, no coração de suas inegáveis e saborosas
diferenças.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia
da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e
da compaixão" (Edusc)
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