Por Leonardo Boff
Os fatos recentes de terrorismo e a declaração de guerra dos
países ocidentais ao Estado Islâmico suscita de forma tenebrosa o fantasma da
guerra moderna com grande capacidade de destruição. Nestas guerras apenas 2%
dos mortos são soldados. Os demais são civis, especialmente mulheres e crianças
inocentes. o que mostra o nível de barbárie a que chegamos. Os aviões militares
atuais parecem figuras apocalípticas, carregadas de bombas que matam pessoas,
destroem construções e danificam a natureza.
Precisamos ter presente que a cultura dominante, hoje
mundializada, se estrutura ao redor da vontade de poder que se traduz por
vontade de dominação da natureza, do outro, dos povos e dos mercados. Essa é a
lógica dos dinossauros que criou a cultura do terrorismo, da guerra, da
insegurança e do medo. Por causa do terrorismo, atualmente, os EUA e a Europa
são reféns do medo. A persistirem as atuais tensões, nunca mais terão paz.
Todos necessitam sentar juntos, dialogar, chegar a convergências, por mínimas
que sejam, convergências nas diferenças, caso quisermos desfazer os mecanismos
que geram permanentemente espírito de vindita e de atos de terror ou de guerra.
Praticamente em todos os países as festas nacionais e seus
heróis são ligados a feitos de guerra e de violência. Os meios de comunicação
levam ao paroxismo a magnificação de todo tipo de violência, bem simbolizado
nos filmes de Schwazenegger como o “Exterminador do Futuro”. Grande parte das
películas atuais abordam temas de violência a mais absurda; até o contos infantis
são contaminados pela ideia de destruição e de guerra.
Nessa cultura o militar, o banqueiro e o especulador valem
mais do que o poeta, o filósofo e o santo. Nos processos de socialização formal
e informal, ela não cria mediações para uma cultura da paz. E sempre de novo
faz suscitar a pergunta que, de forma dramática, Einstein colocou a Freud nos
idos de 1932: é possível superar ou controlar a violência? Freud,
realisticamente, responde: “É impossível aos homens controlar totalmente o
instinto de morte…Esfaimados pensamos no moinho que tão lentamente mói que
poderíamos morrer de fome antes de receber a farinha”. Mas não se
entregava à resignação. Afirmava que os processos civilizatórios, a educação, a
democracia, o esporte, o respeito aos direitos humanos e o cultivo de valores
éticos podem diminui-lhe a destrutividade.
Sem detalhar a questão, tentemos aprofundar um pouco a
questão da violência, um desafio para toda a inteligência. Diríamos que por
detrás da violência funcionam poderosas estruturas. A primeira delas é o caos
sempre presente no processo cosmogênico. Viemos de um caos originário, uma
incomensurável explosão, o big bang. E a evolução é um processo que
procura pôr ordem neste caos destrutivo e fazê-lo generativo na medida em que
se dá o processo cosmogênico no decorrer de bilhões de anos. O próprio
universo, por isso, comporta violência em todas as suas fases, embora sempre
criando sistemas mais ordenados que permitem ascensões rumo a formas mais
elevadas e harmônicas de organização.
São conhecidas cerca de 15 grandes dizimações em massa,
ocorridas aa Terra, há milhões de anos atrás. Na última, há cerca de 65 milhões
de anos, pereceram todos os dinossauros após reinarem, soberanos, 133 milhões
de anos. A expansão do universo possui também o significado de originar ordens
cada vez mais complexas e, por isso também menos violentas. Possivelmente a
própria inteligência nos foi dada para pormos limites à violência e
conferir-lhe um sentido construtivo.
Em segundo lugar, somos herdeiros da cultura patriarcal que
instaurou a dominação do homem sobre a mulher e criou as instituições do
patriarcado assentadas sobre mecanismos de violência como o Estado, as classes,
o projeto da tecno-ciência, os processos de produção como objetivação da
natureza e sua sistemática depredação.
Em terceiro lugar, essa cultura patriarcal gestou a
guerra como forma de resolução dos conflitos. Sobre esta vasta base se
formou a cultura do capital, hoje globalizada; sua lógica é a competição e não
a cooperação, por isso, gera guerras econômicas e políticas e com isso
desigualdades, injustiças e violências.
Todas
estas forças se articulam estruturalmente para consolidar a cultura da
violência que nos desumaniza a todos.
A essa cultura da violência há que se opor a cultura da paz.
Hoje ela é imperativa pois há cerca de 80 focos de guerra, de maior ou menor
intensidade, no mundo, a ponto de o Papa Francisco ter se referido, por várias
vezes, que estamos dentro de uma terceira guerra mundial que acontece
parceladamente.
É imperativa, porque as forças de destruição estão ameaçando,
por todas as partes, o pacto social mínimo sem o qual regredimos a níveis de
barbárie. É imperativa porque o potencial destrutivo já montado pode ameaçar
toda a biosfera e impossibilitar a continuidade do projeto humano. Ou limitamos
a violência e fazemos prevalecer o projeto da paz ou conheceremos, no limite, o
destino dos dinossauros.
Onde buscar as inspirações para cultura da paz? Mais que
imperativos voluntarísticos, é o próprio processo antropogênico a nos fornecer
indicações objetivas e seguras. A singularidade do 1% de carga genética que nos
separa dos primatas superiores reside no fato de que nós, à distinção deles,
somos seres sociais e cooperativos. Ao lado de estruturas de agressividade,
comparecemos como seres de cuidado, principalmente da vida; temos capacidades
de afetividade, com-paixão, solidariedade e amorização. Hoje é urgente que
desentranhemos tais forças para conferir rumo mais benfazejo à história. Toda
protelação é insensata.
O ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da
natureza e co-pilotar a marcha da evolução. Ele foi criado criador. Dispõe de
recursos de re-engenharia da violência mediante processos civilizatórios de
contenção e uso de racionalidade. A competitividade continua a valer mas no
sentido do melhor e não de destruição do outro. Assim todos ganham e não apenas
um.
Há muito que filósofos da estatura de Martin Heidegger,
resgatando uma antiga tradição que remonta aos tempos de César Augusto, veem no
cuidado a essência do ser humano. Sem cuidado ele não vive nem sobrevive. Tudo
precisa de cuidado para continuar a existir. Cuidado representa uma relação
amorosa para com a realidade. Onde vige cuidado de uns para com os outros
desaparece o medo, origem secreta de toda violência, como analisou Freud.
A cultura da paz começa quando se cultiva a memória e o
exemplo de figuras que representam o cuidado e a vivência da dimensão de
generosidade que nos habita, como Francisco de Assis, Gandhi, Dom Helder
Câmara, Luther King Jr, o Papa Francisco e outros. Importa fazermos as
revoluções moleculares (Gatarri), começando por nós mesmos. Cada um estabelece
como projeto pessoal e coletivo a paz e os sentimentos de paz. Els resulta dos
valores da cooperação, do cuidado, da com-paixão e da amorosidade, vividos
cotidianamente.
Fonte riquíssima de paz é o cultivo da espiritualidade como
vem expressa na belíssima oração pela paz de São Francisco de Assis. As
religiões, não raro, produzem guerras. As espiritualidades, paz e convivência
pacífica entre os povos. Elas trabalham mais experiências fundamentais
interiores de encontro com a Divindade, com o Sagrado, ou pouco importam os
nomes, com uma Realidade Suprema de sentido. As doutrinas e as instituições
religiosas gozam de valor secundário, às vezes mais dificultam a experiência
profunda do que a promovem.
A paz não é apenas uma meta a ser buscada mas também um caminho
a ser seguido. Só um caminho de paz gera paz serena e permanente. Ao se “queres
a paz prepara a guerra” devemos com determinação opor: “se queres a paz prepara
a paz”.
Leonardo Boff é teólogo, escritor e autor de A oração
de S.Francisco, uma mensagem de paz para o mundo atual.
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