por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Antoine Leiris é um
jovem jornalista francês. Casado com a esteticista Hélène Muyal, pai de
um filhinho de 17 meses chamado Melvil. Hélène foi durante a noite de sexta
feira, 13 de novembro – data que o Ocidente jamais esquecerá – ao Bataclan, em
Paris, enquanto Antoine ficava com o filho em casa.
Hélène não voltou e
Antoine procurou-a com o peito angustiado e o fôlego suspenso cidade
afora. Primeiro pelos hospitais, depois pelos necrotérios. Ao
terceiro dia, pela manhã, encontrou-a, morta pelas balas dos terroristas. À
tarde escreveu uma carta, a sua mulher e aos assassinos, de impressionante
beleza e força. Nela declara com profunda dor, mas com impressionante
serenidade, o imenso amor que tem por Hélène, um ser único e excepcional, o
amor de sua vida e a mãe de seu filho, que teve sua jovem vida roubada pelos
terroristas. Ao mesmo tempo afirma, clara e firmemente: “Mas vocês não
terão meu ódio.”
Antoine se dirige a
rostos velados e anônimos. Ele não conhece os agressores, não conhece os
assassinos de sua mulher. E, segundo ele mesmo diz, não quer
conhecê-los. Chama-os apenas de “almas mortas”. Por isso, não lhes dará o
presente pelo qual tanto anseiam: seu ódio. Ciente de que no fundo é isso
que os djihadistas esperam, qual seja, - instaurar o reinado do ódio – o
jovem viúvo recusa-se a entrar nesse jogo, porque responder ao ódio com a
cólera seria ceder à mesmíssima ignorância que fez dos terroristas aquilo que
eles são, ou aquilo em que se tornaram: almas mortas, pessoas com vidas sem
sentido, que encontram sua máxima excitação e realização em explodir-se a si
mesmos e aos outros em uma matança coletiva, pretendendo agir em nome de
Deus.
Além do ódio, o
medo. Antoine recusa-se igualmente a sentir medo. E afirma: “Vocês querem
que eu tenha medo, que eu olhe meus compatriotas com olhos desconfiados, que eu
sacrifique minha liberdade pela segurança. Perderam.” Recusa-se ao
medo, como já se recusou ao ódio. Não permitirá que aqueles que roubaram a vida
de sua mulher com balas roubem agora a sua pelo medo, pelo retraimento, pelo
ódio que aprisiona e consome dia após dia a vítima, dando nova vitória ao
algoz.
Antoine e Hélène
viviam uma união feliz, eram pessoas alegres e amorosas. Ele diz sem
pudor aos assassinos daquela a quem amava que, ao vê-la naquela manhã –
após angustiante e interminável busca de três longos dias - e
constatar sua morte, ela estava tão bela como no dia em que se conheceram e se
apaixonaram há mais de doze anos.
Ignoro se Antoine é
crente ou religioso. E se o for, a que tradição religiosa está conectado.
Isto não importa neste momento. Em sua carta ecoa com vigor e beleza o
evangelho de Jesus, que ensina a não odiar o inimigo. Não porque pretenda
amá-lo por decreto ou imposição. Jesus não era louco e sabia que não se
lida assim com as paixões e os sentimentos. Não odiar o inimigo é a melhor
maneira de exercitar diante dele sua liberdade. O ódio escraviza e apenas quem
é livre consegue sobreviver a uma tragédia como a de Paris – e particularmente
a de Antoine – com um coração que ainda espera, ainda ama, ainda é capaz de
superar a dor e encontrar a alegria. E assim fazendo, reverte os planos dos
carrascos, dando às vítimas instrumentos para continuar vivendo e triunfar da
dor, encontrando novo sentido para a vida.
Se Antoine não é
crente, em todo caso é teólogo, embora talvez não saiba que o é. Pois o
que diz em sua carta aos assassinos de sua esposa é teologia da melhor
qualidade: “Se este Deus pelo qual vocês matam cegamente nos criou à sua
imagem, cada bala no corpo de minha mulher terá sido uma ferida em seu
coração”. Já o Papa Francisco, dias após os atentados de Paris, disse
algo parecido. Ao comentar o evangelho do dia, a respeito do pranto de Jesus
sobre Jerusalém, afirmou que vendo a guerra que a humanidade trava em nossos
dias Jesus chora, Deus chora. A morte de Hélène e a de todas as vítimas em
Paris, no Líbano, na Síria, no Iraque e onde mais for, fere dolorosamente o
coração de Deus.
Talvez Antoine não
seja religioso, mas a esperança que o anima é profundamente verdadeira.
Declara-se certo de ser acompanhado pela presença de sua amada todos os dias de
sua vida e espera reencontrá-la no “paraíso das almas livres”, ao qual seus
assassinos não terão acesso. A esperança que o sustenta faz com que – apesar da
dor que o dilacera – não se detenha nela, mas se volte para aquele que é a
razão de seu viver: seu pequeno filho Melvil. Cuidar que Melvil acorde
sereno de sua sesta, que coma com apetite seu lanche e brinque alegremente com
um pai sereno e atento é o melhor exercício amoroso que pode realizar neste
momento.
Antoine tem um
desejo e um objetivo com essa atitude: assegurar-se de que os djihadistas que
assassinaram sua mulher não roubem igualmente a vida de seu filho, fazendo-o
cativo do ódio. Melvil tem que responder a eles e vencê-los sendo uma
criança livre e feliz. E conta com seu pai para ajudá-lo nessa tarefa de
vida inteira. O jovem jornalista de “France Bleue” espera poder dar ao filho
armas para que este enfrente a vida. Mas, em suas próprias palavras “armas
de papel, de pincéis, de notas musicais e não kalachnikovs”.
Após os atentados, os bombardeios no
Oriente Médio recrudesceram, fazendo centenas de novas vítimas. E novas
investidas preparam-se deste lado do mundo. No entanto, o fato de a bela
carta de Antoine haver encontrado imensa repercussão nos meios de comunicação e
nas redes sociais nos dá esperança. Esperança de que a humanidade não
deseja o ódio e sim a liberdade e a convivência. Que assim seja!
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio
A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão
por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
Copyright 2015 – MARIA CLARA
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