Por Maria Clara Lucchetti
Para quem esperava mudanças retumbantes e todas as permissões
havidas e por haver, talvez o final do Sínodo e seu documento de conclusões
represente uma decepção. No entanto, para quem conhece um pouco da
Igreja, há muitas razões para alegria e, sobretudo, esperança. Portas
foram abertas, suavemente, discretamente. E o Papa testemunhou que
pretendia entrar por elas.
Havia duas grandes expectativas neste Sínodo: uma em relação
a um avanço concreto sobre a visão das relações homoafetivas. As
bombásticas declarações do monsenhor polonês Charamsa, na véspera do Sínodo,
não ajudaram. Pelo contrário, a meu ver atrapalharam bastante. Sem
querer emitir nenhum julgamento sobre sua pessoa, esse gênero de confrontações
diretas não funciona em termos eclesiais. Endurecem-se ainda mais as
posições e agudizam-se as polarizações. E foi o que parece haver
acontecido.
Em todo caso, no documento conclusivo é reafirmado
claramente o princípio da misericórdia que afirma que “toda pessoa, independentemente
da própria tendência sexual, seja respeitada em sua dignidade e acolhida com
respeito, a fim de evitar “qualquer marca de injusta discriminação” (n.
76). Apesar de negar enfaticamente qualquer abertura ao matrimônio
homossexual reconhecido pela Igreja Católica, permanece a abertura para o
acolhimento daqueles e daquelas que até bem pouco tempo eram severamente
marginalizados na vida eclesial.
Já com a segunda grande expectativa – a admissão à plenitude
da vida eclesial aos casais divorciados e recasados – creio que houve um maior
avanço. A questão é posta sob o signo do discernimento. Há um
convite aos pastores em todos os níveis – padres, bispos e outros – devem ser
“mais integrados na comunidade cristã nos diversos modos possíveis”. A razão é simples
e cristalina: “são batizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama
sobre eles dons e carismas para o bem de todos” (n. 84).
A “Familiaris Consortio”, documento escrito por João Paulo
II, já assinalava que havia matizes diferentes nos diversos casos.
Enquanto alguns cônjuges abandonaram o companheiro/a sem motivo justo, outros
sofreram amargamente por se verem abandonados pelo cônjuge. Outros ainda
desfizeram a união após haverem encetado todas as tentativas possíveis para
salvá-la. Em suas consciências estavam convencidos de que o primeiro casamento
não havia sido válido sacramentalmente (n. 85).
O n. 86 é o decisivo. Afirma que cada caso deve ser
acompanhado e discernido, para que se estabeleça se é o caso de
obstaculizar ou liberar a participação mais plena na vida da Igreja e os passos
que possam favorecê-la. O parágrafo anterior já fornecia a base para
este, ao afirmar que “em determinadas circunstâncias as pessoas encontram
grande dificuldade de agir de modo diferente. Por isso, ainda que
mantendo uma norma geral, é necessário reconhecer que a responsabilidade com
respeito a determinadas ações ou decisões não é a mesma em todo caso.” E
novamente apela ao discernimento: “O discernimento pastoral, sempre tendo em
conta a consciência retamente formada das pessoas, deve encarregar-se destas
situações”.
O documento foi entregue ao Papa, que agora deverá
pronunciar-se definitivamente sobre ele, seja com a forma de uma exortação
pós-sinodal, seja validando-o tal como está. No entanto, na conclusão do
Sínodo, o Papa apresentou um discurso que ilumina o acontecimento como um todo,
dando a toda a Igreja e à sociedade uma chave de leitura para ler as conclusões
deste grande acontecimento eclesial.
Ao descrever o que foi a experiência sinodal, acentuou
positivamente, com a transparência e a contundência que lhe são próprias, o
fato de a Igreja não haver tido medo de “sacudir as consciências anestesiadas e
de sujar as próprias mãos”. Assim também o fato de o Sínodo ter posto a
descoberto “corações fechados, que frequentemente se escondem no interior dos
ensinamentos da Igreja ou por trás das boas intenções para sentar-se na cátedra
de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos
difíceis e as famílias feridas“.
Indo mais longe e falando mais forte, o Pontífice não temeu
entrar de cheio e na prática no ano da Misericórdia, lembrando que a Igreja
“não é apenas de justos e santos, mas dos pobres e pecadores em busca de
perdão”. E que por isso tentou e conseguiu abrir os horizontes “para
superar toda hermenêutica conspiratória... para transmitir a beleza da novidade
cristã, às vezes coberta pela ferrugem de uma linguagem arcaica ou simplesmente
incompreensível“.
Finalmente, fiel à sua perspectiva sempre atenta ao contexto,
relembra que as culturas são diferentes em tudo, inclusive na concepção da
moral. Pois “o que parece normal para um bispo de um continente, pode
resultar estranho, quase um escândalo, para o bispo de outro continente... Em
geral as culturas são muito diferentes entre si e todo princípio geral
necessita ser inculturado se quer ser observado e aplicado“.
Com chave de ouro fechou o Papa seu discurso, relembrando que
“os verdadeiros defensores da doutrina não são os que defendem a letra, mas o
espírito; não as ideias, mas o ser humano; não as fórmulas, mas a gratuidade do
amor de Deus e seu perdão“. Pois – relembrou ainda, inspiradamente, o
Papa – “o primeiro dever da Igreja não é distribuir condenações ou anátemas,
mas proclamar a misericórdia de Deus, de chamar à conversão e de conduzir todos
os homens à salvação do Senhor”.
Fiados e confiados nesta misericórdia que a todo pecado
recobre e resgata, caminhamos enquanto comunidade eclesial para o tempo
pós-sinodal, crendo firmemente que já é e será mais ainda um tempo de
misericórdia e inclusão, e não de exclusão e rigidez.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil –
Testemunha dapaixão e da compaixão" (Edusc)
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