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domingo, 1 de novembro de 2015

SÍNODO: A LETRA E O ESPÍRITO

 Por Maria Clara Lucchetti 



Para quem esperava mudanças retumbantes e todas as permissões havidas e por haver, talvez o final do Sínodo e seu documento de conclusões represente uma decepção.  No entanto, para quem conhece um pouco da Igreja, há muitas razões para alegria e, sobretudo, esperança.  Portas foram abertas, suavemente, discretamente.  E o Papa testemunhou que pretendia entrar por elas.

Havia duas grandes expectativas neste Sínodo: uma em relação a um avanço concreto sobre a visão das relações homoafetivas.  As bombásticas declarações do monsenhor polonês Charamsa, na véspera do Sínodo, não ajudaram.  Pelo contrário, a meu ver atrapalharam bastante.  Sem querer emitir nenhum julgamento sobre sua pessoa, esse gênero de confrontações diretas não funciona em termos eclesiais.  Endurecem-se ainda mais as posições e agudizam-se as polarizações.  E foi o que parece haver acontecido.
Em todo caso,  no documento conclusivo é reafirmado claramente o princípio da misericórdia que afirma que “toda pessoa, independentemente da própria tendência sexual, seja respeitada em sua dignidade e acolhida com respeito, a fim de evitar “qualquer marca de injusta discriminação” (n. 76).  Apesar de negar enfaticamente qualquer abertura ao matrimônio homossexual reconhecido pela Igreja Católica, permanece a abertura para o acolhimento daqueles e daquelas que até bem pouco tempo eram severamente marginalizados na vida eclesial.

Já com a segunda grande expectativa – a admissão à plenitude da vida eclesial aos casais divorciados e recasados – creio que houve um maior avanço.  A questão é posta sob o signo do discernimento.  Há um convite aos pastores em todos os níveis – padres, bispos e outros – devem ser “mais integrados na comunidade cristã nos diversos modos possíveis”. A razão é simples e cristalina: “são batizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama sobre eles dons e carismas para o bem de todos” (n. 84).

A “Familiaris Consortio”, documento escrito por João Paulo II, já assinalava que havia matizes diferentes nos diversos casos.  Enquanto alguns cônjuges abandonaram o companheiro/a sem motivo justo, outros sofreram amargamente por se verem abandonados pelo cônjuge.  Outros ainda desfizeram a união após haverem encetado todas as tentativas possíveis para salvá-la. Em suas consciências estavam convencidos de que o primeiro casamento não havia sido válido sacramentalmente (n. 85).

O n. 86 é o decisivo.  Afirma que cada caso deve ser acompanhado e discernido, para que se estabeleça se é o  caso de obstaculizar ou liberar a participação mais plena na vida da Igreja e os passos que possam favorecê-la.  O parágrafo anterior já fornecia a base para este, ao afirmar que “em determinadas circunstâncias as pessoas encontram grande dificuldade de agir de modo diferente.  Por isso, ainda que mantendo uma norma geral, é necessário reconhecer que a responsabilidade com respeito a determinadas ações ou decisões não é a mesma em todo caso.” E novamente apela ao discernimento: “O discernimento pastoral, sempre tendo em conta a consciência retamente formada das pessoas, deve encarregar-se destas situações”.

O documento foi entregue ao Papa, que agora deverá pronunciar-se definitivamente sobre ele, seja com a forma de uma exortação pós-sinodal, seja validando-o tal como está.  No entanto, na conclusão do Sínodo, o Papa apresentou um discurso que ilumina o acontecimento como um todo, dando a toda a Igreja e à sociedade uma chave de leitura para ler as conclusões deste grande acontecimento eclesial.

Ao descrever o que foi a experiência sinodal, acentuou positivamente, com a transparência e a contundência que lhe são próprias, o fato de a Igreja não haver tido medo de “sacudir as consciências anestesiadas e de sujar as próprias mãos”.  Assim também o fato de o Sínodo ter posto a descoberto “corações fechados, que frequentemente se escondem no interior dos ensinamentos da Igreja ou por trás das boas intenções para sentar-se na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas“.

Indo mais longe e falando mais forte, o Pontífice não temeu entrar de cheio e na prática no ano da Misericórdia, lembrando que a Igreja “não é apenas de justos e santos, mas dos pobres e pecadores em busca de perdão”.  E que por isso tentou e conseguiu abrir os horizontes “para superar toda hermenêutica conspiratória... para transmitir a beleza da novidade cristã, às vezes coberta pela ferrugem de uma linguagem arcaica ou simplesmente incompreensível“.

Finalmente, fiel à sua perspectiva sempre atenta ao contexto, relembra que as culturas são diferentes em tudo, inclusive na concepção da moral.  Pois “o que parece normal para um bispo de um continente, pode resultar estranho, quase um escândalo, para o bispo de outro continente... Em geral as culturas são muito diferentes entre si e todo princípio geral necessita ser inculturado se quer ser observado e aplicado“.

Com chave de ouro fechou o Papa seu discurso, relembrando que “os verdadeiros defensores da doutrina não são os que defendem a letra, mas o espírito; não as ideias, mas o ser humano; não as fórmulas, mas a gratuidade do amor de Deus e seu perdão“.  Pois – relembrou ainda, inspiradamente, o Papa – “o primeiro dever da Igreja não é distribuir condenações ou anátemas, mas proclamar a misericórdia de Deus, de chamar à conversão e de conduzir todos os homens à salvação do Senhor”.

Fiados e confiados nesta misericórdia que a todo pecado recobre e resgata, caminhamos enquanto comunidade eclesial para o tempo pós-sinodal, crendo firmemente que já é e será mais ainda um tempo de misericórdia e inclusão, e não de exclusão e rigidez.

 Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha dapaixão e da compaixão" (Edusc)    

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