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quinta-feira, 11 de abril de 2013

Renzo Rossi, santo da solidariedade



por FREI BETTO   



 Ensina a  catequese que alguns cristãos lograram o impossível: viver segundo a vontade  de Deus. Tiveram vida coerente, praticaram virtudes heróicas, deram  testemunho do Evangelho como discípulos exemplares de Jesus. São chamados  santos.

        Com o  tempo descobri que nem tudo que reluz é ouro. Há inúmeros santos anônimos  que jamais serão canonizados, e há santos que merecem a glória dos altares  e, no entanto, tiveram atitudes nada condizentes com os valores  evangélicos.

        Aliás, os  processos de canonização custam caro, e são inacessíveis àqueles que viveram  para os pobres, como Padre Cícero, Dom Helder Câmara, Dom Luciano Mendes de  Almeida, Dom Oscar Romero, para citar apenas alguns  clérigos.

        No dia 25 de março, perdemos um santo real, incontestável, de quem tive a  graça de ser amigo: padre Renzo Rossi, italiano de Florença, jesuíta como o  papa Francisco. No sábado, 23, eu deveria visitar Renzo no hospital. Como a  Universidade de Florença cancelou minha palestra, deixei de abraçar o amigo  de 87 anos que padecia de câncer no pâncreas.

        Renzo era  movido a uma alegria exuberante. Parecia dotado de mil baterias. De  aparência jovial, nunca o vi triste nem mesmo carrancudo. Falava alto, tinha  por hábito tocar seus interlocutores e tratá-los com irreverência. Nada  parecia abatê-lo nem constrangê-lo.

        Em 1965  ele veio integrar, no Brasil, a missão jesuíta de Salvador. Um ano após o  golpe militar. Atuava junto aos pobres sem se envolver com a militância em  luta contra a ditadura.

        Em 1969  nós, frades dominicanos, fomos presos, acusados de subversão. Ao todo, sete  frades. Um deles, Giorgio Callegari, era italiano de Veneza. No ano  seguinte, ao retornar de férias à Itália, Renzo encontrou a mãe de frei  Giorgio. Ela pediu-lhe que, ao retornar ao Brasil, fosse a São Paulo  visitá-lo.

        Padre  Renzo veio ao Presídio Tiradentes, onde nos encontrávamos presos em  companhia de quase 200 companheiros (Dilma Rousseff se encontrava na ala  feminina). Frei Tito de Alencar Lima tinha sido reconduzido à tortura em  fevereiro de 1970. Renzo ficou impressionado ao vê-lo. Decidiu que, dali em,  diante, sua missão seria apoiar as vítimas da  ditadura.

        Ao longo  de seis anos, Renzo visitou 14 cadeias brasileiras que abrigavam  prisioneiros políticos. Como ele não tinha nenhum vínculo com política, e  aparentava ser um cristão destituído de ideologia, não levantou  suspeitas.

        Renzo não  era “neutro”. Estava ali para servir às vítimas, não aos algozes. Tanto que,  por ocasião de uma greve de fome nacional, quando todas as comunicações  entre presídios foram interrompidas, a repressão cometeu o equívoco de  permitir que aquele sacerdote insuspeito visitasse os grevistas. Talvez  pensasse que suas preleções poderiam demover os prisioneiros do “gesto  suicida”. Mal sabia a ditadura que Renzo servia de pombo-correio entre os  cárceres, passando informações e alento.

        Em  Salvador, foi preso um jovem de 18 anos: Theodomiro Romeiro dos Santos. Já  no carro de polícia, sacou seu revólver e atingiu três agentes, matando um  quarto, um sargento da Aeronáutica. Renzo passou a visitá-lo. Em 1971,  Theodomiro foi condenado à pena de morte, mais tarde comutada em prisão  perpétua. Veio a anistia, em 1979, e o jovem marcado para morrer não foi  beneficiado.

        Renzo  temia, como todos nós, pela vida de Theodomiro, isolado em um cárcere e alvo  do ódio da ditadura que, aos poucos, desmoronava. Era preciso libertar  Theodomiro. Isso implicava subornar carcereiros e policiais.
        Renzo  voltou à Europa e levantou os recursos. Conseguiu tirar Theodomiro da prisão e do Brasil, conforme relato detalhado no inestimável livro de Emiliano José, “As asas invisíveis do padre Renzo”, que em breve chegará às telas de  cinema.

        Renzo se foi. Seu exemplo fica. Exemplo de algo que constitui a essência de nossa condição humana e, no entanto, nada fácil de ser praticado: a solidariedade.  Jesus ensinou que isso, que é tão humano, é também, divino aos olhos de Deus. E quando se traduz em arriscar a própria vida para salvar outras vidas se chama amor.


Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando  – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros  livros.   
 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.

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