Por Eduardo
Hoornaert
Escrevo
estas considerações no dia 18 de setembro, dia em que o ministro Celso de Mello
deve emitir seu voto no processo do mensalão. Qualquer que seja seu
voto, penso que esse momento de ansiedade geral pode se constituir num exemplo
‘escolar’ que mostra onde estamos, no Brasil, em termos de cristianismo. Pois,
ao assistir à TV ou consultar a internet, a impressão é que estamos em plena
ideologia do ‘bode expiatório’, maneira de pensar que remonta às origens da
humanidade, nunca contestada antes do aparecimento de Jesus de Nazaré no palco
da história. Milenarmente, as mais diversas culturas cultivam ‘ritos de purificação’
onde vítimas são sacrificadas para o bem da tribo, do povo ou da nação. Durante
milênios, a vitimação é considerada normal, inevitável para a boa organização
da sociedade. As próprias vítimas (escravos e trabalhadores no império romano,
por exemplo) nem tinham consciência de serem vítimas e achavam que sua situação
era ‘um dado da natureza’ (assim pensa, por exemplo, Aristóteles). Para
remediar um sentimento de mal-estar na sociedade por causa de crimes ou
guerras, as civilizações, durante milênios, organizam diversas formas de
‘expiação (ritual) dos pecados’, com a finalidade de se purificarem. A ideia é:
respirar de novo o ar puro da inocência e colocar tudo nos eixos, sacrificando
uma vítima. Eis o sentido da ‘festa da expiação’ (Yom Kippur) no judaísmo
antigo. No alto do templo, o sumo sacerdote empurra um bode penhasco abaixo,
proclamando em seguida que Israel está de novo puro e imaculado diante de Ihwh.
Os antigos astecas, no México, praticavam com regularidade sacrifícios humanos
sangrentos no alto de suas pirâmides com a mesma finalidade. O sumo sacerdote
Caifás, no sinédrio, dá o voto de Minerva a favor da condenação de Jesus,
dizendo: ‘um tem de morrer pelo povo’. Algo similar está acontecendo hoje entre
nós. Há quem pense que o Brasil vai ficar melhor, mais puro, menos corrupto,
após a condenação de José Dirceu ou José Genoíno. Há um sentimento de redenção
e muitos vislumbram finalmente uma luz no fim do túnel da impunidade.
Marcharemos resolutos para a constituição de um país finalmente honesto, sob a
batuta de Joaquim Barbosa.
Os cristãos
que pensam assim esquecem que Jesus interrompe categoricamente esse modo de
pensar e, com isso, inaugura um novo tempo para a humanidade. Ele não morre na
qualidade de vítima inocente. Morre em consequência de uma postura assumida
contra os abusos cometidos pelas autoridades de seu país, tanto judaicas como
romanas. Jesus sente compaixão pelo povo comum, que não tem consciência da
exploração impiedosa que sofre por meio de leis consideradas santas (o código levítico,
a torá), mas que na realidade beneficiam os ‘puros’ (sacerdotes) e condenam os
‘impuros’. Em contrapartida à lei, ele divulga nas aldeias da Galileia, com
muita autoridade, um programa totalmente novo: é preciso abrir a casa ao
visitante incômodo no meio da noite; perdoar as dívidas e erros do vizinho (não
sete vezes, mas setenta vezes sete vezes); não cobiçar a mulher do vizinho nem
seu animal de carga; não ter inveja de ninguém (pois a inveja destrói os laços
de fraternidade); não delatar o vizinho; frequentar as reuniões da comunidade
onde se ensina a lei de Moisés sem as deturpações divulgadas pelos sacerdotes
de Jerusalém; ver em qualquer pessoa um irmão, uma irmã. Esse programa, fácil
de ser enunciado, é difícil de ser executado, pois está em oposição diametral
com comportamentos desde muito enraizados nas pessoas. O programa de Jesus
mostra que uma sociedade pode sobreviver sem postular sacrifícios nem produzir
vítimas inocentes. O reino de Deus nas aldeias da Galileia, uma experiência
real e histórica, até hoje orienta o cristianismo. A genialidade de Jesus não
só consiste na lucidez em detectar o mecanismo sacrifical, mas também na
coragem de desativá-lo nas aldeias da Galileia. Essa experiência-modelo implica
em nunca jogar a culpa no outro, e é isso que abre uma nova perspectiva para a
humanidade e inaugura um tempo de fraternidade universal e amor incondicional
ao próximo.
Seria
ingenuidade pensar que a mensagem de Jesus tenha sido imediatamente
compreendida por todos, pois na mente das pessoas os antigos modos de pensar e
reagir, assim como o costume de sempre jogar a culpa nos outros e gostar de ver
sua derrota, de pisar em cima de ‘culpados’ ou de ter inveja, têm caráter
ancestral, são sedimentações mentais transmitidas de geração em geração por
pessoas que, embora se digam cristãos, não entendem o cristianismo. Seria
ingenuidade pensar que o Brasil, por ser o maior país católico do mundo, tenha
compreendido o evangelho em seu âmago. Os dias que atravessamos mostram o
contrário (pelo menos nas áreas que se comunicam por TV ou internet). As
reações diante dos ‘mensaleiros’ comprovam que mesmo alguns que se declaram
cristãos da esquerda podem cair na armadilha do mecanismo ‘bode expiatório’,
ainda persistente nas mentes. A penetração da mensagem evangélica é um processo
lento e difícil, pois exige capacidade de se converter (repensar), rever
atitudes tomadas, praticar auto-análise e reconhecer que ‘pecadores’ somos nós,
na medida em que somos omissos. Estamos aqui diante do cerne do evangelho, pois
a vocação cristã consiste em assumir o ‘modo de pensar’ de Jesus de Nazaré. É
verdade, Jesus sabia que muitas pessoas não entendiam seus propósitos. Ele
sempre foi paciente nesse ponto, pois tinha consciência de que se tratava de
algo muito enraizado nas mentalidades.
Não podemos
esquecer o outro lado da questão. Apesar de tudo, de dois mil anos para cá, um
fio dourado de perdão, amor universal e fraternidade percorre a história da
humanidade. Há inúmeros exemplos. Todos e todas conhecemos iniciativas que
rechaçam a ideia de vingança, sacrifício ‘em benefício do bom andamento da
sociedade’ e julgamento de ‘culpados’. Tudo isso substituído por uma abertura
irrestrita ao ‘outro’. Também nesse sentido, ‘um outro mundo é possível’.
Texto postado no blog: http://www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/2013/09/o-bode-expiatorio.html
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
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