Frei Betto
Feliz Ano Novo aos que acordam em 2015 sem a ressaca da culpa, plenos de vida
na qual a paixão sobrepuja a omissão e o encanto tece luzes onde a amargura
costuma bordar teias de aranha.
Feliz ano a quem não sonega afetos, arranca de si fontes onde borbulham
transparências e não mira os que lhe são próximos como estranhos passageiros de
uma viagem sem pouso, praias ou horizontes.
Felizes os que abandonam no passado seus excessos de bagagem e, coração
imponderável, recolhem à terra a pipa do orgulho e do tédio; e, generosos,
ousam a humildade.
Feliz Ano-Novo a todos que despertam ao som de preces e agradecem o tido e não
havido, maravilhados pelo dom da vida, malgrado tantas rachaduras nas paredes,
figos ressecados e gatos furtivos.
Bom ano a quem gosta de feijão e se compraz nos grãos sobrados em prato alheio.
A quem mira a vida como dádiva, contração do útero, desejo ereto, espírito
glutão insaciado de Deus.
Novo seja o ano daqueles que não tropeçam na própria língua, sonegam palavras
ácidas, desaprendem a maledicência e semeiam fragrâncias nas veredas dos
sentimentos.
Seja também feliz o ano de quem se guarda no olhar recatado e não mergulha no
abismo da inveja nem se perde em escuridões onde o pavor é apenas o eco de seus
próprios temores.
Novo ano a quem se recusa a ser tão velho que ambiciona tudo novo: corpo, mundo
e amor. Viver é graça para quem se dedica a acariciar rugas e trata suas
limitações como cerca florida de choupana montanhesa.
Tenham um feliz ano todos que sabem ser gordos e felizes, endividados e
alegres, enfermos e otimistas, carentes de certezas mas repletos de vindouras
fortunas em seus anseios.
Feliz Ano-Novo aos órfãos de Deus e de alvíssaras, aos que se abrigam em
armaduras de verdades irrefutáveis, aos cavaleiros do desassossego e às damas
que recobrem, sob o pudor do corpo, a mais deslavada orgia espiritual.
Felizes sejam, neste ano, os homens ridiculamente adornados, supostos campeões
de vitórias inconsúteis que nada temem, exceto a expressão súplice do filho e o
sorriso irônico das mulheres que os desprezam.
Felizes sejam também as mulheres que devotam amor e dor a quem merece, e
que, no espelho, se descobrem tão belas por fora quanto o sabem por dentro.
Seja novo o ano para os bêbados que jamais tropeçam em impertinências, aos
alpinistas que despencam do próprio ego, e para quem se agasalha de ética e não
conspira contra a vida alheia.
Feliz Ano-Novo aos que colecionam utopias, fazem das mãos arado e, com o
próprio suor, regam as sementes solidárias que cultivam.
Sejam muito felizes os velhos que não se disfarçam de jovens, e os jovens que
superam a velhice precoce; seus corações tragam a marca atemporal de quem se
inebria de emoções férteis.
Muitas felicidades aos que trazem em si o afago do silêncio, sentem-se muito
bem acompanhados quando estão sós e, à tarde, oferecem em suas varandas
chocolate quente adocicado com sorrisos de sabedoria.
Um ano feliz aos que não se ostentam no poleiro da própria vaidade, tratam a
velhice com humor, a morte sem estranheza, e brincam com a criança que os
habita.
Feliz Ano-Novo aos sonâmbulos que trafegam nas veredas do futuro e sonham que a
vida é um sonho tão real que dele não vale a pena despertar.
Um Ano-Novo muito feliz a todos que professam a incredulidade nos ídolos de pés
de barro, veneram bens invisíveis, andam pelas madrugadas destronando o medo e
acordam o galo que desperta o alvorecer.
Muito Feliz Ano-Novo a todos que creem no que não merece fé e têm fé nos lampejos
da dúvida, nos desvãos da incerteza e no mistério que instaura, como presente,
o Deus vivo cuja morte é reiteradamente proclamada por quem nele deságua.
Frei Betto é escritor, autor de “Oito vias para ser feliz”
(Planeta), entre outros livros.
http://www.freibetto.org/>
twitter:@freibetto.
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