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sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

SOU CHARLIE, SOU AHMED, SOU YOHAN, SOU... HUMANA




Por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio        


            Faz uma semana que sou Charlie, como mais de dois milhões de franceses e incontáveis milhões de pessoas mundo afora.  Levo tarja preta na alma escrita em francês “Je suis Charlie” e acompanho as manifestações, as procissões, as lágrimas e o luto de Marianne, a República construída pela Revolução que cunhou as três gloriosas palavras “liberdade, igualdade, fraternidade”.

            Sou Charlie porque creio na liberdade e no direito de todos de vivê-la e praticá-la.  No bojo deste direito estão as caricaturas e os desenhos – nem todos me agradavam - dos cartunistas assassinados.  Especialmente, é claro, os que criticavam cáustica e desrespeitosamente mistérios que para mim são sagrados, como católica que sou.  Confesso que não apreciava ver crenças que constroem minha identidade – como a Santíssima Trindade e a Virgem Maria – sendo objeto de caricaturas fortemente críticas e irreverentes.  

            Porém, apesar de não apreciar estas e outras caricaturas, entre as quais as que criticam fortemente o Islã e o Profeta Maomé, não posso não ser Charlie. Quando 12 pessoas são brutalmente assassinadas em nome de Deus, não posso não colocar-me na pele dos mesmos que me ferem e ofendem com suas charges.  Não posso... porque eles são vítimas de um assassinato brutal e cruel.  Não posso, porque o direito deles à vida é mais sagrado do que o meu a ver minha fé respeitada.

            Quando a violência de qualquer tipo faz vítimas, não há outro lugar para se estar senão onde estão elas.  Por isso, sou Charlie.  Sou também Ahmed, o policial muçulmano que morreu para defender os caricaturistas que criticavam sua religião.  Executado brutal e impiedosamente na rua em frente à redação do Charlie Hebdo, Ahmed Merabet era jovem e honesto.  Trabalhador, deixou mulher e filhos. Morreu um muçulmano, um homem de bem, um francês, um policial honesto. A violência cega da arma o metralhou em segundos. E desde aí...sou Ahmed.

            Sou igualmente qualquer um dos reféns mortos no mercado kosher de Vincennes: Yohan, Yohav, Philippe e François. Sou todos eles e todas elas, vivendo seu susto e seu medo, seu desespero diante do ataque, e finalmente sua morte impiedosa perpetrada pelo atirador de Montrouge. E sou toda a comunidade francesa e judaica que nestes dias começa a sentir mais medo do que até então e teme por suas vidas e pelas de seus filhos. E por isso sou Yohan, Yohav... por isso choro e vivo com eles seu luto, enquanto seus corpos são transportados para Jerusalém.

            Sou qualquer muçulmano que hoje se sente triste e constrangido porque o massacre do Charlie Hebdo mostrou uma face de sua religião que não é a verdadeira.  Sou qualquer dos devotos de Alá, que neste momento desejam que o mundo não os considere a todos fanáticos, assassinos e pessoas temíveis. Sou membro de qualquer povo que hoje possa ser desprezado, discriminado e vitimado por sua crença ou falta de crença, por sua identidade ou sua prática, por suas vestes ou gestos rituais.

            Sou qualquer um e qualquer uma, qualquer passante, qualquer cidadão que hoje perdeu algo da espontaneidade do sorriso e da alegria de viver.  Sou iraquiana, sou síria, sou egípcia, sou nigeriana, sou de Boko-Haram.  Sou de qualquer lugar onde, hoje, viver é um peso e um terror, e não plena alegria.

            Sou todos porque sou uma, porque sou humana, porque sou criada para a vida e não para a morte.  E, por isso, a morte violenta de qualquer irmão ou irmã em humanidade me atinge e mata algo em mim.  Não posso não sentir e com-padecer com eles e elas, porque eles e elas são eu, são parte de mim.

            Não é a civilizada França que está lacerada.  Ou o combalido Iraque.  Ou a flagelada Síria.  É a humanidade que sangra e tem que voltar a crer na liberdade e exercer o inviolável direito de praticá-la.  Podem ofender-me, criticar-me, insultar-me.  Não tenho o direito de matar quem exerce sua liberdade expressando posições com as quais não concordo.  Não me cabe exterminar os que se voltam contra mim e me ofendem.

            A condição humana é maior que as nações, que as pátrias, que as ideologias, que as religiões, que os laicismos de todas as formas.  Por isso, quando há vítimas em algum embate, o lugar de um ser humano é com elas.  O fundamento derradeiro e teológico para isso é o fato de que Deus mesmo está aí.  Não se há de encontrá-lo nas armas dos agressores e dos que os vingam com as mesmas armas.  Ele mora onde as vítimas sofrem, sangram, choram.  E onde os justos padecem e se compadecem.

            Por isso sou Charlie, sou Ahmed, sou Yohan... Sou assim porque sou humana... Sou filha de Deus, como todos eles e elas.  Tudo está perdoado, como mostra a capa da nova edição do Charlie Hebdo, após a tragédia.  Mas o resgate da inocência, além de passar pelo perdão, não pode eludir nem descurar a identificação com as vítimas. Se todos hoje não formos Charlie, amanhã não haverá ninguém para ser nem Charlie nem ninguém.  A violência não para e cava o vazio, o abismo onde a humanidade não pode cair.
           
 A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.  
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