Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
Faz uma semana que sou Charlie, como mais de dois milhões de franceses e
incontáveis milhões de pessoas mundo afora. Levo tarja preta na alma
escrita em francês “Je suis Charlie” e acompanho as manifestações, as
procissões, as lágrimas e o luto de Marianne, a República construída pela
Revolução que cunhou as três gloriosas palavras “liberdade, igualdade,
fraternidade”.
Sou Charlie porque creio na liberdade e no direito de todos de vivê-la e
praticá-la. No bojo deste direito estão as caricaturas e os desenhos –
nem todos me agradavam - dos cartunistas assassinados. Especialmente, é
claro, os que criticavam cáustica e desrespeitosamente mistérios que para mim
são sagrados, como católica que sou. Confesso que não apreciava ver
crenças que constroem minha identidade – como a Santíssima Trindade e a Virgem
Maria – sendo objeto de caricaturas fortemente críticas e irreverentes.
Porém, apesar de não apreciar estas e outras caricaturas, entre as quais as que
criticam fortemente o Islã e o Profeta Maomé, não posso não ser Charlie. Quando
12 pessoas são brutalmente assassinadas em nome de Deus, não posso não
colocar-me na pele dos mesmos que me ferem e ofendem com suas charges.
Não posso... porque eles são vítimas de um assassinato brutal e cruel.
Não posso, porque o direito deles à vida é mais sagrado do que o meu a ver
minha fé respeitada.
Quando a violência de qualquer tipo faz vítimas, não há outro lugar para se
estar senão onde estão elas. Por isso, sou Charlie. Sou também
Ahmed, o policial muçulmano que morreu para defender os caricaturistas que
criticavam sua religião. Executado brutal e impiedosamente na rua em
frente à redação do Charlie Hebdo, Ahmed Merabet era jovem e honesto.
Trabalhador, deixou mulher e filhos. Morreu um muçulmano, um homem de bem, um
francês, um policial honesto. A violência cega da arma o metralhou em segundos.
E desde aí...sou Ahmed.
Sou igualmente qualquer um dos reféns mortos no mercado kosher de Vincennes:
Yohan, Yohav, Philippe e François. Sou todos eles e todas elas, vivendo seu
susto e seu medo, seu desespero diante do ataque, e finalmente sua morte
impiedosa perpetrada pelo atirador de Montrouge. E sou toda a comunidade
francesa e judaica que nestes dias começa a sentir mais medo do que até então e
teme por suas vidas e pelas de seus filhos. E por isso sou Yohan, Yohav... por
isso choro e vivo com eles seu luto, enquanto seus corpos são transportados
para Jerusalém.
Sou qualquer muçulmano que hoje se sente triste e constrangido porque o
massacre do Charlie Hebdo mostrou uma face de sua religião que não é a
verdadeira. Sou qualquer dos devotos de Alá, que neste momento desejam
que o mundo não os considere a todos fanáticos, assassinos e pessoas temíveis.
Sou membro de qualquer povo que hoje possa ser desprezado, discriminado e
vitimado por sua crença ou falta de crença, por sua identidade ou sua prática,
por suas vestes ou gestos rituais.
Sou qualquer um e qualquer uma, qualquer passante, qualquer cidadão que hoje
perdeu algo da espontaneidade do sorriso e da alegria de viver. Sou
iraquiana, sou síria, sou egípcia, sou nigeriana, sou de Boko-Haram. Sou
de qualquer lugar onde, hoje, viver é um peso e um terror, e não plena alegria.
Sou todos porque sou uma, porque sou humana, porque sou criada para a vida e
não para a morte. E, por isso, a morte violenta de qualquer irmão ou irmã
em humanidade me atinge e mata algo em mim. Não posso não sentir e
com-padecer com eles e elas, porque eles e elas são eu, são parte de mim.
Não é a civilizada França que está lacerada. Ou o combalido Iraque.
Ou a flagelada Síria. É a humanidade que sangra e tem que voltar a crer
na liberdade e exercer o inviolável direito de praticá-la. Podem
ofender-me, criticar-me, insultar-me. Não tenho o direito de matar quem
exerce sua liberdade expressando posições com as quais não concordo. Não
me cabe exterminar os que se voltam contra mim e me ofendem.
A condição humana é maior que as nações, que as pátrias, que as ideologias, que
as religiões, que os laicismos de todas as formas. Por isso, quando há
vítimas em algum embate, o lugar de um ser humano é com elas. O
fundamento derradeiro e teológico para isso é o fato de que Deus mesmo está
aí. Não se há de encontrá-lo nas armas dos agressores e dos que os vingam
com as mesmas armas. Ele mora onde as vítimas sofrem, sangram,
choram. E onde os justos padecem e se compadecem.
Por isso sou Charlie, sou Ahmed, sou Yohan... Sou assim porque sou humana...
Sou filha de Deus, como todos eles e elas. Tudo está perdoado, como
mostra a capa da nova edição do Charlie Hebdo, após a tragédia. Mas o
resgate da inocência, além de passar pelo perdão, não pode eludir nem descurar
a identificação com as vítimas. Se todos hoje não formos Charlie, amanhã não
haverá ninguém para ser nem Charlie nem ninguém. A violência não para e
cava o vazio, o abismo onde a humanidade não pode cair.
A teóloga é autora de “O mistério
e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora
Rocco.
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