por Frei Betto
O ataque terrorista ao jornal “Charlie
Hebdo” não foi apenas um gesto tresloucado de dois jovens franceses de fé
muçulmana. Ele se origina em um dos últimos capítulos da Guerra Fria: a
ocupação do Afeganistão pelos soviéticos (1979-1989). Em 1979, um golpe de
Estado levou ao poder afegãos pró-soviéticos.
Zbigniew Brzezinsky, responsável pela
Segurança Nacional dos EUA na gestão Jimmy Carter, viu na ocupação soviética
excelente oportunidade de colocar em prática seu mirabolante plano para
rechaçá-la e instalar um governo pró-EUA: incrementar o fanatismo religioso
contra os “comunistas ateus”.
Havia alternativas, como grupos
nacionalistas afegãos, laicos, que se opunham a Moscou. Porém, a Casa Branca
preferiu chocar o ovo da serpente e patrocinar os grupos fundamentalistas
reunidos na Aliança Islâmica do Mujahedin (combatente) Afegão, que reagia
indignada aos propósitos da infiel modernização soviética, como permitir às
meninas acesso à escola...
Agentes da CIA passaram a incentivar a
jihad (guerra santa) contra os soviéticos. A Arábia Saudita, aliada da Casa
Branca, se dispôs a doar US$ 20 bilhões para a cruzada da Aliança Islâmica
treinar seus fanáticos guerrilheiros e armá-los inclusive com mísseis
anti-helicópteros. A CIA desembolsou mais US$ 20 bilhões. Assim, lograriam
expulsar os “comunistas ateus” e levar ao poder um governo aliado dos EUA.
George Bush pai era, desde os anos 60,
amigo íntimo de um saudita do ramo da construção: Muhammad
Bin Laden, pai de Osama. Após o Afeganistão ser invadido pelos russos, ele
propôs ao amigo que seu filho trabalhasse para a CIA, na Arábia Saudita,
disfarçado de monitor da ONG Blessed Relief.
Logo, o jovem Osama, de 23 anos, foi transferido para Cabul, entusiasmado com a
jihad financiada pelos EUA. Através de sua ONG, atraiu 4 mil voluntários
sauditas que, no Afeganistão, foram incorporados à Aliança Islâmica – berço do
Taliban e, a médio prazo, do Estado Islâmico.
A queda do Muro de Berlim e o esfacelamento
da União Soviética apressaram a saída das tropas de Moscou do Afeganistão.
Porém, os 4 mil voluntários sauditas, ao retornarem a seu país de origem, já
não se readaptaram à vida civil. Sem formação política, haviam sido
transformados em “máquinas de matar”.
O rei Fahd ainda tentou cooptar
o jovem rebelde Osama Bin Laden. Nomeou-o conselheiro real. Mas ele retornara
encantado com a jihad, obcecado em combater os infiéis. No ano seguinte, foi
expulso da Arábia Saudita. E em 1996 declarou a jihad contra os EUA.
Os atos terroristas contra o “Charlie
Hebdo” e o supermercado judaico resultaram da política equivocada dos EUA e da
Europa Ocidental no Oriente Médio.
Em 2003, Geoge W. Bush invadiu o
Iraque sob pretexto de armas de destruição em massa e alinhamento com Bin
Laden. Ao terminar a guerra, os xiitas tomaram o poder no Iraque, para decepção
dos EUA, que preferiam os sunitas. Passam, então, a estimular os sunitas a
derrubarem os xiitas, também influentes na Síria.
O gênio escapou da garrafa: os sunitas
formaram o Estado Islâmico. O EI agora domina parte da Síria e do Iraque e
oferece ao mercado petróleo bem mais barato, angariando uma fortuna.
Diante do terror, todas as atitudes
segregadoras, da islamofobia à “guerra infinita”, são inúteis. O terror é
imprevisível. E continuará a sê-lo, enquanto o Ocidente acreditar que a paz
resultará da imposição das armas, e não como fruto da justiça e do
reconhecimento de que a diversidade de ideias e crenças é um direito - e merece
respeito.
Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Paralela), entre outros
livros.
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