por Assuero Gomes
Natalício nasceu cego, na periferia de Recife, por causa de
uma sífilis não tratada de sua mãe. Nasceu no dia de Natal, daí seu nome.
Como toda criança paupérrima não teve acesso à escola e
praticamente foi abandonado por sua mãe aos seis anos de idade por causa do
novo companheiro dela que não suportava choro de menino, sendo muito violento,
ligado ao narcotráfico.
Vagava a criança por entre cães e lixo, dormindo nas ruas, ou
melhor, nas calçadas, sob as marquises, ora alimentado por um pedinte ou por
outro, até que uma mais esperta, o “alugou” para seu ofício de esmoler, o que
lhe trouxe uma melhoria nos ganhos, pois exibia Natalício em toda sua desgraça,
nos vários semáforos da cidade.
Como toda criança, Natalício sonhava. O que mais desejava era
comida. O que lhe davam, eram restos dos restos do que mendigavam, e como ele
não conhecia bem quais eram os sabores, quando experimentava doce, seus olhos
sem luz, se iluminavam por instantes fugidios.
A falsa mãe fazia questão que ele não engordasse e que
ficasse praticamente desnudo para angariar mais dinheiro nas esmolas. Era uma
criança envolta em panos, farrapos melhor dizendo.
Natalício, como todo cego e todo poeta, pode ver na
escuridão, como já disse Chico, e aproveitando o compositor, certa vez a
criança ouviu tocando no rádio a música Brejo da Cruz, onde as crianças se
alimentavam de luz. Natalício começou a aperrear sua falsa mãe para saber que
gosto tinha a luz e se ele poderia experimentar também.
Muitas e muitas vezes eles comeram sopa, de madrugada, que
grupos caridosos distribuíam nas ruas do centro.
-Essa é luz? Perguntava Natalício.
-Não. Fica calado e come, menino buchudo! – respondia a
mulher. Isso é água com sal. Água de mar. Natalício sentia gosto de lágrima.
Natalício revirava os olhos e triste se fechava ainda mais no
seu mundo sombrio. Quando estava muito escuro mesmo, a mulher pedia para ele ir
orientando o caminho.
O que mais Natalício queria era doce.
Estava chegando o natal, e como acontece todo ano, muitas
pessoas compram presentes e distribuem junto com a sopa. É uma festa. Pena que
Natalício não podia ver, mas gostava de ouvir os apitos, os piões rodando, as
bolas batendo no chão.
Era dura a vida para ele, muito dura. Muitas vezes levou
palmadas para chorar, para atrair a atenção dos motoristas ou pedestres e
causar dó nas pessoas. Quando lhe perguntavam o que sentia, a mulher dizia que
estava doente sem remédio e sem comida.
Esse Natal não seria diferente dos outros. Apenas um detalhe.
Alguém deu-lhe um pedaço de chocolate, mordido já, a bem da verdade, mas um
pedaço de chocolate! Natalício jamais havia experimentado tal sensação.
Imediatamente ligou o sabor à luz, sim, havia experimentado o sabor da luz! E
que sabor...
Como ninguém nunca sente desejo por algo que nunca tenha
experimentado ou visto, nosso menino passou a pedir por chocolate, ou melhor,
por luz. Inicialmente baixinho e depois, como não era atendido, gritava.
-Quero luz, quero luz!
A princípio a mulher achou bom, porque quem passava pensava
que o menino pedia a visão e se compadeciam mais ainda dele, aumentando a
esmola. O problema é que quando não estava ninguém por perto ele continuava a
gritar: - Quero luz! Estou com fome de luz!
Em vez de comprar um chocolate para ele a mulher batia cada
vez mais forte. Quanto mais ele pedia luz mais apanhava, de tal maneira que
algumas pessoas vendo os arranhões e os hematomas pelo corpo, perguntavam o que
estava acontecendo e ela dizia que por ele ser cego, caía muito.
Na véspera do natal, Natalício conseguiu fugir, nem que por
algumas horas, quando a mulher havia tomado uns copos de aguardente.
Tropeçando, se arrastando, perguntando, esgueirou-se por dentro de uma pequena
capela onde se falava do nascimento do menino Jesus, naquela parte da estrela.
Natalício ouviu atento. O pregador falava que a estrela de Belém deixava um
caminho de luz para orientar os magos e iluminava a noite e parou bem em cima
da manjedoura com muita luz, uma intensa luz que clareou toda a escuridão do
mundo. Natalício imaginava uma imensa quantidade de chocolate, e se ele acaso
houvesse visto o mar imaginaria um mar de chocolate.
Natalício desejou então, de todo coração, estar presente
naquela noite na gruta de Belém. Ah! Como ficaria feliz, poder experimentar
toda a luz que sentisse vontade. Saciar-se de luz. Quanto a Jesus ele tinha
vontade de conhecer também, embora achasse que Ele não era muito bom, pois a
mulher que lhe explorava usava muito o nome dele para pedir e ainda dizia que
Ele é que pagaria àquelas pessoas. Natalício não entendia, mas que esse Jesus
devia ser muito feliz, isso sim, pois tinha uma estrela de luz só para ele.
Jamais passaria fome.
Quanto mais Natalício ouvia a pregação mais se imaginava
naquela cena. Já estava bem ali perto do menino, e imaginou pedindo um pouco de
luz a Maria, e esta de repente, se parecia com sua mãe, a idealizada na
escuridão dos seus olhos, mas na claridade de seu coração. Sentiu-se protegido
e confortável e saciado, pela primeira vez na vida, nem que fosse na
imaginação, pois como dissemos, os poetas e os cegos podem ver na escuridão.
Ali adormeceu Natalício, entre a pregação, o perfume do
incenso e o ouro da capela, envolto em panos remendados. Ninguém notou.
Enquanto isso, a mulher deu em si, após acordar da bebedeira,
e saiu a procurar desvairada por Natalício, seu ganha pão. E foi nas esquinas,
nos botecos, nas sarjetas, sobre os papelões dos moradores das calçadas e das
ruas, e nada. Nada de Natalício. Jamais pensaria em procurar numa capela. Mesmo
assim, perguntando e perguntando, finalmente descobriu que ele havia entrado
sem querer naquela igreja. A celebração já havia acabado e estavam fechando as
portas, pois as pessoas iam para sua casa para a ceia do Natal... Ela tentou
entrar, mas não havia lugar para ela. Perguntou ao porteiro pela criança, este
disse não ter visto nenhuma criança cega, embora houvesse muitos mendigos.
Depois de muito implorar, o homem permitiu que ela olhasse dentro, por alguns
instantes. Nada.
A mulher não percebeu, mas no chão do cantinho da capela, uma
poça de luz com uns panos dobrados, brilhava de maneira especial, com um leve
odor de chocolate.
Assuero Gomes.
Do grupo cristão O Dom da Partilha
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