Por Maria Clara Bingemer
Chega
hoje às mãos dos fiéis católicos e também a todos os homens e mulheres de
coração aberto e espírito alerta para o mundo e os outros o primeiro documento
integralmente do pontificado de Francisco: a exortação apostólica Evangelii
Gaudium (A alegria do Evangelho).
Aos
que esperavam que questões controversas fossem abordadas e
revertidas, alguma decepção. O Papa reafirma os pontos
nodulares da fé e da moral cristãs ou mesmo contorna alguns deles seguramente
por entender que devam ser tratados em outros foros e outras instâncias.
Assim é com o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com os segundos casamentos
etc. Dentro de menos de um ano acontecerá o Sínodo da Família, que seguramente
tratará destas e de outras questões.
Agora
é o momento de dar o tom de seu Pontificado, que completa oito meses. E
ele o faz com um texto que gira em torno daquilo que tem dito e repetido em
todos os seus pronunciamentos desde que foi eleito no conclave: a centralidade
do Evangelho. E a alegria que deve acompanhar aqueles que por ele pautam
sua vida e vivem a missão de anunciá-lo.
Porém,
apesar do tom otimista e exortativo à confiança e à alegria, o Papa não mede
palavras quando lança um projeto de conversão do papado, propõe a
descentralização da Igreja ou apresenta um autêntico plano de reforma do
Vaticano. O documento é crítico e também propositivo ao lançar o projeto
para o futuro da Igreja, que inclui duros ataques contra os sacerdotes que
brigam pelo poder e fazem dela um campo de batalha e não uma comunidade
evangelizadora e missionária.
O
Papa está convencido de que a Igreja necessita recuperar a frescura original do
Evangelho, embora encontrando novas formas e métodos criativos de
comunicá-lo. Neste ponto, segue de perto seu antecessor João Paulo II,
que propunha uma evangelização nova em seu ardor, nova em seus métodos...
Porém, insiste que isso não será possível sem uma conversão pastoral e
missionária que represente mudança.
Por isso, a exortação
tem um espírito reformador. O bispo de Roma deseja reformar as estruturas
eclesiais, para que todas se tornem mais missionárias. E está certo de que isso
não se fará sem uma séria descentralização na Igreja e sem recuperar o sentido
da colegialidade que ele aconselha as conferências episcopais a recuperar e
intensificar.
Tal
modelo de Igreja não pode ser unívoco e o Papa admite que haja outros modos de
configuração para a comunidade cristã, além dos tradicionais empregados até
agora. Em todo caso, o essencial é que a Igreja seja aberta e
saia ao encontro das pessoas. Nada do tesouro de que é depositária deve
permanecer fechado, mas sempre aberto e posto à disposição de todos. Nem
mesmo os sacramentos devem permanecer inacessíveis. E aqui podemos
encontrar afirmações ousadas do Papa, que declara que a Eucaristia “não é um
prêmio para os perfeitos, mas um generoso remédio e um alimento para os
fracos”.
Empenhado em que a Igreja seja realmente apaixonada pelo exercício da
evangelização, o documento adverte para os perigos mortais que rondam essa
missão primordial: o pragmatismo incolor que desgasta a fé diuturnamente, o
cuidado exagerado e ostensivo da liturgia, da doutrina e do prestígio da
Igreja, sem que se preocupem com a inserção real do Evangelho, o clericalismo e
o elitismo da hierarquia e dos sacerdotes, sinal evidente de uma preocupação
narcísica com o poder e não com o anúncio da Boa Notícia.
Entre os obstáculos a uma
autêntica evangelização, o Papa aponta alguns dentro da Igreja: por exemplo, a
discriminação da mulher, impedida de ter acesso aos postos de maior responsabilidade
dentro da comunidade eclesial. Outros, no entanto, vêm de fora. E
as palavras mais duras do Pontífice vão para o atual sistema econômico,
“injusto pela raiz”, criando uma economia que mata porque prevalece a lei do
mais forte. E, assim, cria-se um sistema onde se excluem pessoas que
passam a ser não exploradas, mas lixo, sobras. O dinheiro deve servir e
não dominar.
Fiel
a suas origens latino-americanas, o Pontífice, em sua exortação, lembra a
primazia dos pobres, que devem receber por parte da Igreja atenção prioritária
sob pena de a Evangelização não ser digna de crédito. E os pobres de hoje têm o
rosto não apenas dos que passam necessidades econômicas, mas também das vítimas
de todo tipo de violência, e dos migrantes que peregrinam por um planeta que
decretou o fim da geografia e cujas fronteiras se transformaram em trincheiras
que vitimizam os mais fracos.
São
muitos os desafios, mas o Papa deixa prevalecer o otimismo e a esperança.
Se se conseguir transformar a vida de uma só pessoa, vale a pena entregar-se ao
trabalho de anúncio do Evangelho. Só podemos esperar que esse entusiasmo
contagie todos nós que somos Igreja e, portanto, responsáveis pelo futuro do
projeto do Reino de Deus anunciado por Jesus de Nazaré.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio.
A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – paixão
por Deus em tempo de descrença” (Editora Rocco).
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