Por Leonardo Boff
No
pensamento social e filosófico a questão da fé não está em alta. Antes
pelo contrário, a maioria dos pensadores tributários dos mestres da suspeita e
filhos da modernidade, colocam a fé sob suspeita, considerada como pensamento
arcaico e mítico ou como cosmovisão do povo supersticioso e falto de
conhecimento, na contramão do saber científico.
Como
quer que interpretemos a fé, o fato é que ela está ai e mobiliza milhões de
jovens vindos de todo mundo para a Jornada Mundial da Juventude, além de outros
milhares que acorreram para ver o novo Papa Francisco. Suspeito que nenhuma
ideologia, causa ou outro tipo de líder que não religioso consiga trazer para
as ruas tão numerosa multidão. Pode-se dizer responsavelmente que ai vigora
alienação e arcaísmo?
Tal
fato nos leva a refletir sobre a relevância da fé na vida das pessoas. O conhecido
sociólogo Peter Berger mostrou em seu Rumor de anjos: a sociedade moderna e a
redescoberta do sobrenatural (1969) a falácia da secularização que pretendeu
ter banido do espaço social a religião e o sagrado. Ambos ganharam novas formas
mas estiveram sempre ai presentes, porque estão enraizados profundamente nas demandas
fundamentais da vida humana.
Imaginar que um dia o ser humano abandone totalmente a fé é tão inverossímil
quanto esperar que nós para não ingerirmos alimentos quimicalizados ou
transgênicos deixemos uma vez por todas de comer. Quero abordar a fé em seu
sentido mais comezinho, para aquém das doutrinas, dogmas e religiões, pois ai
aparece em sua densidade humana.
Há um
dado pre-reflexo que subjaz à existência de fé: a confiança na bondade
fundamental da vida. Por mais absurdos que haja e os há quase em demasia, o ser
humano crê que vale mais a pena viver do que morrer. Dou um simples exemplo: a
criança acorda sobressaltada em plena noite; grita pela mãe porque o
pesadelo e a escuridão a encheram de medo. A mãe toma-a no colo, no gesto da magna
mater, enche-a de carinho e lhe diz: “querida, não tenhas medo; está tudo bem,
está tudo em ordem”. A criança, entre soluços, reconquista a confiança e dentro
de pouco, adormece tranquila. Estará a mãe enganando a criança? Pois nem tudo
está bem. E contudo sentimos que a mãe não mente à criança. Apesar das
contradições, há uma confiança de que uma ordem básica perpassa a realidade.
Esta impede que o absurdo tenha a primazia.
Crer é
dizer: ”sim e amém” à realidade. O filósofo L. Wittgenstein podia dizer em seu Tractatus
logico-philosophicus: “Crer é afirmar que a vida tem sentido”. Este é o
significado bíblico para fé –he’emin ou amam – que quer dizer: estar seguro e
confiante. Daí vem o “amém” que significa:“é isso mesmo”. Ter fé é estar seguro
no sentido da vida.
Essa
fé é um dado antropológico de base. Nem pensamos nele, porque vivemos dentro
dele: vale a pena viver e sacrificar-se para realizar um sentido que valha a
pena.
Dizer
que este sentido da vida é Deus é o discurso das religiões. Esse sentido
pervade a pessoa, a sociedade e o universo, não obstante nossas infindáveis
interrogações. Escreveu o Papa Francisco na encíclica Lumen Fidei:”A fé
não é luz que dissipa todas as nossas trevas mas é uma lâmpada que guia nossos
passos na noite e isto basta para o caminho”.
Dizer
que esse sentido, Deus, se acercou de nós e que assumiu nossa carne quente e
mortal em Jesus de Nazaré é a leitura da fé cristã. Em nome desta fé em Jesus
morto e ressuscitado, se reuniram esses milhares de jovens e acorreram mais de
dois milhões de pessoas em Copacabana.
Entre
outros traços do carisma do Papa Francisco é sua fé cristalina que o torna tão
despojado, sem medo (o que se opõe à fé não é o ateísmo mas o medo) que busca
proximidade com as pessoas especialmente com os pobres. Ele inspira o que é
próprio da fé: a confiança e o sentimento de segurança. É o arquétipo do pai
bom que mostra direção e confiança.
Fez
uma conclamação importante, verdadeira lição para muitos movimentos no Brasil:
a fé tem que ter os olhos abertos para as chagas dos pobres, estar perto deles
e as mãos operosas para erradicar as causas que produzem esta pobreza.
Na
Jornada houve belíssimas celebrações e canções cujo tom era de piedade.
Entretanto, não se escutaram as belas canções engajadas das milhares
comunidades de base. Não se ouviram também suas belas canções que falam
do clamor das vítimas, dos indígenas e camponeses assassinados e do martírio
da Irmã Dorothy Stang e do Padre Josimo. O Papa Francisco enfatizou uma
evangelização que se acerca do povo, na simplicidade e na pobreza. Repetiu
muito: ”não tenham medo”. O empenho pela justiça social cria conflitos, vítimas
e suscita medo, que deve ser vencido pela fé.
Voltemos ao tema da fé humana. Quantos são aqueles que se apresentam como ateus
e agnósticos e no entanto possuem essa fé como afirmação do sentido da vida e
se empenham para que seja justa e solidária. Talvez não a confessam em termos
de Deus e de Jesus Cristo. Não importa. Pois a base subjacente a esta fé em
Deus e Cristo está lá presente sem ser dita.
Esta fé
básica impõe limites à pós-modernidade vulgar que se desinteressa por uma
humanidade melhor e que não tem compromisso com a solidariedade pelo destino
trágico dos sofredores. Outros, vendo o fervor da fé dos jovens e a comoção até
às lágrimas sentem talvez saudades da fé da infância. E ai podem surgir
impulsos que os animam a viver a fé humana fundamental e quem sabe se abrem até
à fé num Deus e em Jesus Cristo. É um dom. Mas o dom de uma conquista. E
então um sentido maior se abre para uma vida mais feliz.
Leonardo Boff escreveu Francisco de Assis e Francisco de
Roma: uma nova primavera na Igreja? Editora Mar de Ideias, Rio 2013.
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