Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER
Há
muitos anos, em 1980, o jesuíta italiano Paolo dall´Oglio teve um sonho:
refundar em país árabe o mosteiro católico siríaco de Mar Musa, chamado de São
Moisés o Abissínio, no deserto de Damasco, na Síria. O desejo de Paolo era
que fosse uma comunidade orante inter-religiosa, onde as tradições
pudessem se reunir, rezar juntas, partilhar a vida e viver realmente em
comunidade. E foi então que em 1992, lá instalou a Comunidade religiosa
ecumênica mista al-Khalil ( amigo de Deus em árabe), nome bíblico e corânico do
patriarca Abraão.
Sempre
apaixonado, enquanto religioso católico, pelo diálogo com o Islã, Paolo
dall´Oglio viu-se em meio à guerra que vitima a Síria, seu país de eleição, e
viveu isso com extrema dor. Começou a denunciar abertamente os crimes do
regime de Bachar el-Assad e, em consequência, foi expulso do país em junho de
2012. Em julho de 2013, retornou à Síria na parte norte, controlada pelos
rebeldes, onde foi capturado com paradeiro ignorado. Sua entrada no país tinha
o objetivo de negociar e obter a libertação de vários militantes.
Desde
então circulam inúmeros boatos sobre seu paradeiro e destino. Alguns
sites da internet, bem como alguns organismos da imprensa internacional já
noticiaram sua morte mais de uma vez. Mas até agora isso não foi
comprovado. E foi mesmo desmentido por outras fontes, inclusive pela Chanceler
italiana.
Os
que conhecem o religioso que se inculturou de maneira plena na Síria, ali
derramando todo o fervor de sua vocação temem por sua vida. E esse temor
se enraíza no fato de conhecerem não apenas o grande amor que tem pelo país,
como sua profunda mística que não teme sacrifícios nem riscos para que a paz
volte a reinar em sua tão amada Síria.
Em
um livro publicado em maio deste ano, cuja tradução francesa tem como título
“La rage et la lumière”, ele escreveu: “A revolução pela liberdade foi
arrastada na lama de uma guerra civil entre muçulmanos sunitas e xiitas
alaouitas...A comunidade muçulmana não é externa à minha consciência mais
íntima, mas ela é realmente minha carne, meu corpo humano ao qual pertenço,
minha comunidade, minha identidade. Esta guerra civil é insuportável para
mim. Eu gostaria de fazer qualquer coisa para detê-la.”
O
religioso está consciente e sempre esteve do risco que corria para conseguir
que soltassem os reféns e negociar uma pacificação, na cidade de Rakka, ao
norte da Síria, que se encontrava naquele momento sob a administração da
charia. Mas pode-se estar seguro igualmente que fosse qual fosse o risco,
Paolo não recuaria. Para comprová-lo, basta a declaração de seus próximos
de que, desde o início da guerra, em uma declaração com sabor crístico, afirmou
desejar tomar sobre si todo o sofrimento dos sírios.
Quem
viu o recente e admirável filme francês “Homens e deuses” pode bem entender o
desejo que brota do coração do místico cristão apaixonado pelo Islã. Seu
compromisso com a comunidade muçulmana que vive no país de sua eleição e se
tornou sua comunidade o leva até o extremo de desejar sofrer em lugar deles.
Ou pelo menos em comunhão com eles. E não estar fora e a salvo do
perigo que corre o povo que ama.
Na
história religiosa da humanidade existem muitas dessas figuras crísticas
semelhantes ao Pe. Dall´Oglio. Simone Weil, na Londres não ocupada em
plena Segunda Guerra Mundial, ansiava entrar de novo na França ocupada para
poder dar sua vida em comunhão com os que ali padeciam. Etty Hillesum, a jovem
judia holandesa citada no sermão de Quarta-feira de cinzas pelo Papa Bento XVI,
ofereceu-se voluntariamente para ir ao campo de Westerbork, a fim de ajudar a
Deus e ser um bálsamo para as feridas de seu povo. E assim muitos que, seguindo
o movimento de kenosis de Jesus, dos santos e dos mártires, foram ao encontro
do sofrimento e da morte, a fim de não estar separados do povo ao qual
entregaram a vida.
A uma
jornalista em Rakka, o Pe. Dall´Oglio declarou: “Jejuo e faço o Ramadã para
pedir a Deus a graça da unidade para o povo sírio”. Enquanto rezamos por
sua vida, unamo-nos igualmente a ele pedindo para que os sofridos povos árabes,
especialmente a Síria e o Egito, possam finalmente conhecer a paz que tanto
desejam e que tanto lhes tem sido negada.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do
departamento de teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “O
mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”,
Editora Rocco.
Copyright 2013 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Copyright 2013 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário